Um homem de 29 anos, identificado como Alpha Kabeja, natural de Uganda, estava pedalando em Londres quando foi acidentalmente atingido por uma van em 1º de janeiro de 2012, data em que parte das ruas da capital britânica ainda amanhecia vazia após as celebrações de Ano-Novo.
Apesar de não apresentar ferimentos visíveis, transeuntes perceberam que ele havia perdido a consciência e rapidamente o levaram a um centro médico de referência, o University College London Hospital (UCLH).
No pronto-socorro, os médicos constataram pressão arterial dentro da faixa normal e ausência de cortes profundos, mas o relato de colisão a 40 km/h e a perda súbita de consciência levantaram suspeita de traumatismo cranioencefálico oculto.
Por protocolo, foi solicitada uma tomografia computadorizada de urgência. As imagens mostraram um hematoma subdural comprimindo estruturas nervosas e empurrando o cérebro cerca de 9 mm para a esquerda — condição conhecida como midline shift, indicativa de risco iminente de herniação.
Diagnóstico e cirurgia de emergência
Diante do quadro, a equipe de neurocirurgia realizou uma craniotomia descompressiva para remover o coágulo, instalar um dreno de pressão intracraniana e retirar parte do osso temporal, aliviando o inchaço que ameaçava as funções vitais.
Ao todo, três procedimentos sucessivos foram necessários em 48 horas, incluindo a reposição de uma placa de titânio feita sob medida e, posteriormente, a retirada temporária desse implante quando a pressão voltou a subir.
Durante a internação, a remoção da porção frontal do crânio provocou afonia temporária; Kabeja precisou de traqueostomia e foi nutrido por sonda. Ainda assim, apresentou evolução surpreendente: a sedação foi suspensa depois de 14 dias, e as primeiras respostas motoras voluntárias apareceram no 20.º dia.
Novas memórias
Três semanas depois, Kabeja finalmente recobrou a consciência. Contrariando as expectativas médicas, ele não apenas se lembrava de sua identidade, mas também tinha memórias vívidas de uma vida que não era a sua. Uma das primeiras lembranças foi a de estar esperando gêmeos com a namorada da época:
“Me lembro de guardar a foto do ultrassom em um dos meus livros”, afirmava com convicção.
Ele acreditava, ainda, ter participado de uma entrevista no serviço secreto britânico e voado em jatos particulares para missões confidenciais. Ao ser confrontado, o paciente descreveu outro enredo para o acidente: disse que voltava do trabalho no “Serviço Secreto” quando foi atingido, embora, na verdade, pedalasse para encontrar a namorada e celebrar o Ano-Novo.
Segundo os médicos, trata-se de amnésia pós-traumática com confabulação: o cérebro preenche lacunas de memória genuína com conteúdos verossímeis criados a partir de desejos, fragmentos de notícias e referências pessoais.
Quem é Alpha Kabeja
Nascido em Kampala, capital de Uganda, Kabeja emigrou com a família aos oito anos para Liverpool, onde passou por uma cirurgia cardíaca. Morou depois em Camden, norte de Londres, estudou Sociologia em uma faculdade comunitária e trabalhou como chef de cozinha antes de tornar-se gestor de uma banda indie chamada “A Band Named King”.
Músico autodidata, ele costumava circular pela cidade com um ukulele amarrado à mochila. Apaixonado por ciclismo, planejava participar de maratonas amadoras e, posteriormente, disputar vagas na equipe paralímpica britânica — meta que mantém como motor de reabilitação.
Reabilitação intensa
Depois de 13 meses entre o UCLH e o National Hospital for Neurology and Neurosurgery, o ugandense passou a frequentar um complexo programa de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. A esquerda do corpo permaneceu mais fraca, exigindo sessões diárias em bicicleta ergométrica adaptada.
No campo cognitivo, psicólogos introduziram diários, aplicativos de agenda e exercícios de atenção para ajudá-lo a distinguir lembranças falsas das verdadeiras.
Mesmo tendo reconhecido a natureza ilusória das experiências, ele admite que as memórias “inventadas” foram essenciais para manter o ânimo.
Crianças ressoam com meu subconsciente porque, na época do meu acidente, todos que eu conhecia estavam esperando filhos, e gêmeos entraram em cena porque gêmeos são comuns na minha família
Atualmente, Alpha Kabeja vive em um apartamento adaptado em Royal College Street, a poucas quadras do local do acidente. Ele se voluntaria em instituições de apoio a vítimas de lesões cerebrais, oferece relatos de superação em escolas públicas e treina três vezes por semana em pistas do Regent’s Park.
Seu objetivo de médio prazo é completar uma prova de 10 km sem apoio fisioterápico; a longo prazo, mira a classificação para o revezamento de paraciclismo nos Jogos de 2028.
O caso evidencia como traumas aparentemente leves, sem lesões externas aparentes, podem desencadear deslocamentos cerebrais graves e síndromes de memória incomuns.
Também reforça a importância de diagnósticos por imagem precoce e de programas de reabilitação integrados que combinem cirurgia, apoio psicológico e reinserção social — elementos que, na jornada de Alpha Kabeja, transformaram a fronteira entre imaginação e realidade em uma alavanca para recomeçar.