A proibição de responsabilizar os filhos por crimes cometidos pelos pais é um princípio bem estabelecido na legislação — no entanto, isso não é suficiente para aqueles que carregam sobrenomes associados a assassinatos notoramente conhecidos.
O sistema judiciário tem recebido solicitações para a anulação de paternidade ou maternidade de indivíduos que desejam se desvincular de casos que ainda provocam revolta pública.
Embora o trâmite seja complicado, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em fevereiro demonstra que existe uma possibilidade de alívio para quem busca não ser identificado na sociedade pelos erros dos pais.
O filho de 27 anos de Cristian Cravinhos, condenado por envolvimento no assassinato dos pais de Suzane Von Richthofen, obteve o direito de manter apenas o nome da mãe em sua certidão de nascimento e carteira de identidade.
O sobrenome Cravinhos já havia sido abandonado em 2009, com autorização do Judiciário do Paraná, pelo jovem e seu irmão.
Contudo, ele recorreu ao STJ para remover o nome completo do pai de todos os seus documentos. “Não adianta nada não carregar o sobrenome, mas ter o nome inteiro do pai criminoso no campo da filiação”, explicou o rapaz durante o processo.
Impactos nas instituições de ensino
A Terceira Turma do STJ aceitou por unanimidade o pedido do jovem, que alegou nunca ter tido qualquer vínculo social ou afetivo com o pai e ter enfrentado considerável constrangimento na escola e no trabalho devido ao crime perpetrado por Cristian, seu irmão Daniel e Suzane, em 2002.
A decisão levou em consideração os efeitos psicológicos resultantes de bullying e sucessivas mudanças escolares após a condenação do pai.
De acordo com os autos, Cristian teve contato com o filho apenas três vezes ao longo da vida dele. Mesmo antes da prisão, ele cortou laços e deixou de fornecer qualquer apoio após se separar da mãe.
O genitor não apenas rompeu com a mãe, mas também abandonou completamente o filho, privando-o de qualquer apoio afetivo ou material, evidenciando a total quebra dos deveres parentais lamentou a ministra do STJ Nancy Andrighi, relatora da ação, durante a sessão que analisou o pedido.
A ausência de laço afetivo é um dos motivos aceitos na Justiça para a remoção dos nomes dos pais, além de erros de registro e falta de vínculo biológico.
Outra situação ocorre quando a criança é adotada após ter vivido em abrigo e já possui um registro com os nomes de pai e mãe (os adotantes podem solicitar a alteração da filiação na certidão).
A terceira hipótese se aproxima do caso da filha de Elize Kitano Matsunaga, de 43 anos, que foi condenada a 16 anos de prisão por ter assassinado e esquartejado o marido, Marcos Matsunaga, em 2012.
Mitsuo e Misako Matsunaga, avós paternos da criança que tinha apenas 1 ano quando Marcos foi morto, estão movendo um processo na Vara da Infância e Juventude de São Paulo para anular a maternidade de Elize. Eles têm a guarda da menina e desejam impedir que a condenada tenha qualquer tipo de vínculo com a atual adolescente de 14 anos.
Elize contratou a advogada Juliana Fincatti Santoro para tentar barrar os avós. “Minha cliente quer exercer o direito de ser mãe. Ela não cometeu nenhum crime contra a filha, sempre demonstrou afeto e tem plenas condições de cuidar da menina”, afirmou Santoro durante o processo. No entanto, a própria mãe decidiu remover o sobrenome Matsunaga como uma tentativa de eliminar sua ligação com o crime que cometeu: atualmente se apresenta como Elize Araújo Giacomini.
Outro caso notável
Outra criminosa que busca se desvincular de sua história é Anna Carolina Trotta Jatobá, de 40 anos, condenada a 26 anos pela morte da enteada Isabella Nardoni, em 2008. Assim que foi liberada da prisão, ela retirou o sobrenome do marido, Alexandre Nardoni, de 45 anos, e voltou a usar seu nome de solteira.
Os dois filhos do casal também removeram o sobrenome Nardoni e adotaram apenas o sobrenome da mãe e o Alves, herdado do pai. Recentemente, Anna Carolina solicitou cidadania italiana para os filhos.
Mudar o sobrenome próprio, como fizeram Elize e Anna Carolina, é menos complicado do que retirar os nomes de pais criminosos dos documentos.
Desde 2022, maiores de 18 anos podem alterar o prenome uma vez sem justificativa em qualquer cartório. O sobrenome pode ser modificado quantas vezes forem necessárias, especialmente devido a casamento, divórcio ou vínculos familiares.
Quando há suspeitas de má-fé ou tentativas de ocultação de antecedentes criminais, o cartório pode acionar a Justiça. Cabe ao juiz decidir se a alteração é legítima ou se caracteriza uma tentativa de apagar artificialmente o passado.
“O objetivo da lei é equilibrar o direito ao recomeço com o dever de preservar a memória e proteger terceiros“, esclarece a advogada Mabel de Souza Pinho.
Suzane sem Richthofen
A própria Suzane von Richthofen, atualmente com 41 anos, foi condenada a 39 anos de prisão pelo assassinato dos pais e está em liberdade desde 2023. Recentemente, ela oficializou a troca de nome para Suzane Louise Magnani Muniz.
A alteração ocorreu no registro de sua união estável com o médico Felipe Zecchini Muniz, com quem teve um filho. Ela adotou o sobrenome Magnani em homenagem à avó materna e o Muniz do esposo, buscando se distanciar do passado e ser aceita na nova família.
Daniel Cravinhos, irmão de Cristian e ex-namorado de Suzane, também foi condenado a 38 anos de prisão e já alterou seus documentos duas vezes. A primeira mudança aconteceu quando se casou com a biomédica Alyne Bento, adotando o sobrenome dela. Em 2025, ao se casar novamente, passou a se chamar Daniel Andrade, levando o sobrenome da nova esposa.
“Cheguei a ser expulso de um restaurante com uma namorada porque o gerente disse que não aceitava pessoas como eu no estabelecimento“, explicou Daniel.
Cristian, que cumpre uma pena de 43 anos por sua participação no homicídio e por tentar subornar policiais, afirmou que nunca abrirá mão do sobrenome que seu filho deseja esquecer: “Caí com esse nome, vou me levantar com ele.”
Quando é possível excluir os pais ou mudar o nome na Justiça
Anulação de paternidade e maternidade: É possível solicitar quando há erro no registro, falta de vínculo biológico, inexistência de laço afetivo ou quando a criança é adotada após viver em abrigo e já possui um registro com pai e mãe — os adotantes podem requerer a troca da filiação na certidão. Caso seja comprovado que o reconhecimento foi feito por engano e sem afeto genuíno, é viável retirar o nome do pai ou da mãe da certidão.
Mudança do nome ou sobrenome: Aqueles que desejam se desvincular de um nome associado a um crime podem recorrer à Lei nº 14.382 de 2022, que estabelece regras distintas para prenome e sobrenome. Pessoas maiores de 18 anos podem alterar o prenome uma vez, sem necessidade de justificativa, em qualquer cartório. Por outro lado, o sobrenome pode ser modificado quantas vezes forem necessárias, especialmente por meio de casamento, divórcio ou mudança no vínculo familiar.