A ideia de solidão está obsoleta. Primeiro, porque admitimos em nós mesmos um ideal de vida compartilhado, coletivo ou interpessoal. Segundo, pela rudeza de interpretação em vê-la como um monstro a ser vencido. Somos fecundados, gestados, nascemos e crescemos subsidiando esta regra. Há uma ditadura da solidão que não condiz com a realidade eminente. Na filosofia (que tanto recorremos em momentos de desespero), não há terrorismos quando o indivíduo permanece livre de contatos pessoais.
Schopenhauer (rechaçado como pessimista e ignorado por asseclas) dizia em negrito que “a solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais”. A frase é curta, mas sua dimensão é veloz. No entanto, há inúmeras chances de não tê-la em seu caderninho de anotações, visto que a sociedade atual conspira a favor do networking expansionista. A fome individual devora pessoas em busca de visibilidade, status ou coexistência.
Não pensa-se na digestão quando tais relações estão sendo digeridas. Grande parte das aflições humanas provém da ordem relacional, seja por desamparo, abandono, separações, desavenças, traições, desprezos ou indiferenças. São combustíveis geradores de ansiedade, transtornos de conduta ou antissociais, ideações suicidas ou homicidas, autodestruição, dependências afetivas ou químicas, organismos que vivem na ausência de autonomia. Conheço uma infinidade de pessoas em um panorama surreal de desejos que envolvem pactos integrados a alguém. Os vazios expandem-se, na medida em que o preenchimento está condicionado ao que a sociedade quer.
Aprendemos uma infinidade de regras, mas recusamos a sábia missão do “eu-sozinho”, talvez por influências diretas e indiretas. Há uma patologia que já nasce nas relações sociais. Nem todas as pessoas que nos envolvem são dotadas de bom caráter, espírito livre ou incorruptível. Torna-se latente a absorção dos males vizinhos, pois nossa carência indestrutível é porta de entrada. Acreditamos nas relações e nos fazemos a partir dela. A ideia de amizade contemporânea é uma guerra fria: não sabemos quem são aliados ou inimigos e tampouco quais suas estratégias. Com isso, as decepções põem o indivíduo na cela depressiva. Brigamos conosco, com a própria alma. Brigamos com o mundo, com a vida e até com Deus. O olhar fecha, o gosto amarga-se, o coração já não bate com prazer. O universo torna-se hostil e bárbaro. As chances de adoecimento são reais. Contudo, em que menos damos luz é ao bom senso, de perceber que nascemos e morremos sós, o que não quer dizer que estejamos “solitários”.
Com isso, é necessário enxergar que não estamos desprovidos, somente criamos sua ideia fixa. Você está com você, sua única e fidedigna companhia, a mais leal e verossímil, a que te conduz, te faz pensar, te acelera e estaciona, na clareza de existir com a clareza de ser. Criamos a felicidade, um termo subjetivo e amorfo, mas determinado em com quem estamos vivendo: bomba a ser detonada.
Tudo bem, você pode ainda achar maluco esse pensar. Afinal, com cinco mil amigos virtuais em sua timeline solidão é para os “fracos”. Não há fortes, mas o simulacro imaginário da força. Não estamos combatendo a relação interpessoal, mas ampliando a visão sobre a solitude, que reforça a privacidade salutarmente, livre de comprometimentos alheios ou falsas idealizações.
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Saber quem se é torna-se uma brisa de autoconhecimentos. No entanto, quanto mais permanente é o encontro do indivíduo consigo, menor a necessidade do outro para seguir em frente. Estar só é conhecer-se, dar oportunidades para descobrir a pessoa que habita há tempos em você. A meditação é um meio, a vontade um início e fim. O organismo quer seu ser para funcionar justamente. Na selva, a sobrevivência está atrelada à maneira como você se relaciona internamente.
Estar só é uma chance primorosa de encontrar um equilíbrio solto no tempo de múltiplas aflições relacionais.
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Fonte: Obvious