Se você é um admirador da poesia brasileira, com certeza já ouviu falar sobre Cora Coralina.
Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, que ficou mais conhecida pelo seu nome artístico, foi uma renomada escritora e poetisa brasileira. Ela nasceu em 1889, na cidade de Goiás (GO), então conhecida como Vila Boa de Goiás. Sua vida foi marcada por uma trajetória de superação e uma paixão intensa pela escrita.
Assim como acontece com a grande maioria dos artistas, Cora Coralina demostrou seu amor pela literatura e pela arte desde a infância. No entanto, ela passou muitos anos da sua vida afastada dessa paixão. Foi apenas quando se tornou adulta que conseguiu viver da escrita.
Muitas pessoas poderiam ter as suas carreiras atrapalhadas pelo início tardio na poesia, mas isso não aconteceu com Cora, que foi capaz de estabelecer uma personalidade única e autêntica em seus textos, tocando os seus leitores com mensagens profundas e cheias de significado.
Carreira de Cora Coralina
O primeiro livro de Cora Coralina a ser publicado foi “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, somente aos 75 anos de idade, em 1965. Essa obra reuniu uma série de poemas que retratavam a simplicidade e a beleza do cotidiano, resgatando suas memórias e experiências vividas em sua cidade natal.
Ela é até hoje considerada como uma das escritoras mais importantes na literatura nacional, e o seu trabalho deixou um legado muito importante para a poesia brasileira. Obras como “Meu Livro de Cordel” (1976) e “Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha” (1983), são uma marca de sua escrita, que valorizava a vida simples, a sensibilidade e a autenticidade.
Vida pessoal de Cora Coralina
Além de sua carreira literária, Cora Coralina também construiu uma vida pessoal rica em experiências e superações.
Ela trabalhou como doceira durante grande parte de sua vida, e essa experiência influenciou diretamente em seu trabalho, além de render-lhe o título de “a poetisa que adocica a vida”.
Cora foi casada com o advogado Cantídio Tolentino Bretas, com quem teve seis filhos.
Durante a sua caminhada, ela passou por dificuldades financeiras e chegou a perder um de seus filhos, o que marcou a sua vida e influenciou diretamente na sua arte, trazendo mais emoção para as suas obras.
Ela adotou o pseudônimo “Cora Coralina” após a morte de seu marido, como uma maneira de homenageá-lo.
A poesia de Cora Coralina é muito admirada pelos brasileiros por falar sobre a simplicidade da vida, a esperança, o amor, e a essência humana.
Cora Coralina faleceu em 1985, aos 95 anos de idade, deixando um impacto duradouro no cenário literário brasileiro.
Sua trajetória de amor pela arte e pela vida e superação são uma grande inspiração para todas as pessoas cheias de sonhos e que seguem em frente apesar de todos os obstáculos que pode encontrar em seu caminho.
12 poemas de Cora Coralina que refletem a sua essência
A seguir, listamos 12 poemas dessa brilhante representante da arte brasileira, que trazem um pouco da sua essência.
1. Aninha e Suas Pedras
Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
Esse é um dos poemas mais conhecidos de Cora Coralina. Na leitura, vemos eu eu-lírico empenhado em trazer conselhos de resiliência e força para o leitor, o que cria uma relação de intimidade e confiança com ele.
Cora Coralina traz nesse poema a resiliência e a disponibilidade de tentar novamente quando um plano não dá certo. Ao usar os verbos no imperativo, ela praticamente ordena os leitores sobre a importância de seguir em frente sempre.
2. Mãe
Renovadora e reveladora do mundo
A humanidade se renova no teu ventre.
Cria teus filhos,
não os entregues à creche.
Creche é fria, impessoal.
Nunca será um lar
para teu filho.
Ele, pequenino, precisa de ti.
Não o desligues da tua força maternal.
Que pretendes, mulher?
Independência, igualdade de condições…
Empregos fora do lar?
És superior àqueles
que procuras imitar.
Tens o dom divino
de ser mãe
Em ti está presente a humanidade.
Mulher, não te deixes castrar.
Serás um animal somente de prazer
e às vezes nem mais isso.
Frígida, bloqueada, teu orgulho te faz calar.
Tumultuada, fingindo ser o que não és.
Roendo o teu osso negro da amargura.
Nesse poema, Cora Coralina também traz conselhos às leitoras mulheres, fazendo recomendações tanto para a maternidade quando para a relação com o mundo.
Essa obra é um reflexo de sua preocupação em trazer mensagens de valor para outras mulheres. Ela é apreciada por muitos de seus leitores.
3. Conclusões de Aninha
Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
O trecho que mostramos acima é a parte inicial de Conclusões de Aninha, que também é uma obra de grande prestígio da poetisa. Esse poema conta uma história que se repete muito nas cidades, onde uma pessoa humilde aborda um casal que caminha em direção ao seu carro para contar a sua realidade e pedir ajuda
Cora Coralina traz a reação de cada uma das personagens focando na oralidade. Enquanto o marido ofereceu para ajudar com dinheiro, mas não estabeleceu qualquer relação com o pedinte, a mulher não lhe ofereceu nada, mas por outro lado se ofereceu para ouvi-lo e mostrou empatia para com a sua situação de vulnerabilidade.
4. Considerações de Aninha
Melhor do que a criatura,
fez o criador a criação.
A criatura é limitada.
O tempo, o espaço,
normas e costumes.
Erros e acertos.
A criação é ilimitada.
Excede o tempo e o meio.
Projeta-se no Cosmos.
Nesse poema, Cora reflete sobre a nossa imperfeição quando comparadas ao Universo e o seu funcionamento.
Essa ressalta a nossa condição humana de falhas e de limitações, enquanto exalta a soberania da criação que deu origem a todos nós. É uma importante reflexão para trazer perspectiva e humildade a todos nós.
5. Mulher da Vida
Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.
Mulher da Vida – o título do poema – é uma expressão informal que se usa de modo costumeiro para nomear as prostitutas. Ao invés de lançar sobre essas mulheres um olhar contaminado de preconceito e distanciamento, o que o eu-lírico faz é sublinhar a comunhão que estabelece com ela.
Nesse poema, Cora Coralina aborda duas mulheres que, embora tenham optado por seguir caminhos diferentes na vida, são amigas e companheiras que desejam parceiras, que desejam o bem uma à outra acima de tudo.
Cora demonstra fala sobre a profissão mais antiga do mundo e identifica as prostitutas no poema pelo seu lugar de atuação: zona, rua.
6. Becos de Goiás
Becos da minha terra…
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce fugidia,
e semeias polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha, jogada no monturo.
Amo a prantina silenciosa do teu fio de água,
Descendo de quintais escusos sem pressa,
e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.
Amo a avenca delicada que renasce
Na frincha de teus muros empenados,
e a plantinha desvalida de caule mole
que se defende, viceja e floresce
no agasalho de tua sombra úmida e calada
Esses versos tão significativos foram extraídos de um poema presente no livro Os Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, que foi publicado em 1965.
Nesse poema, Cora Coralina faz uma homenagem à sua terra, trazendo tanto os aspectos negativos, como a umidade, o lodo, mas e o positivo, como o sol e a vitalidade.
Em Becos de Goiás, podemos contemplar uma das características mais tradicionais de Cora Coralina, uma expressão de perseverança, de florescer.
7. Meu Destino
Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida…
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida…
Esse poema fala sobre um amor duradouro e bem vivido. Nos versos, Cora fala sobre o passado e o presente do relacionamento do eu-lírico com o seu parceiro.
Os dois se cruzaram por obra do acaso, mas acabando se conectando. De uma forma simples e sutil, ela narra esse encontro de almas tão poderoso, e dá a entender que o destino dos dois é estar juntos para sempre.
8. Ofertas de Aninha (Aos moços)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.
Nesse poema, percebemos a resiliência e a evolução através das afirmações do eu-lírico sobre a pessoa que se tornou com o passar do tempo.
No passado, ele revela ter adquirido experiências de vida. No presente, se mostra orgulhoso de quem é, e no futuro espera se tornar quem realmente deseja ser.
Através da sua escolha de linguagem, sincera e livre de vergonha, Cora Coralina demonstra sua intenção de se aproximar do leitor e de transmitir a clássica mensagem de tentar outra vez.
9. Ressalva
Este livro foi escrito
por uma mulher
que no tarde da Vida
recria a poetiza sua própria
Vida.
Este livro
foi escrito por uma mulher
que fez a escalada da
Montanha da Vida
removendo pedras
e plantando flores.
Este livro:
Versos… Não.
Poesia… Não.
Um modo diferente de contar velhas estórias.
Esses versos fazem parte do livro Poemas dos Becos de Goiás e Estorias Mais, lançado pela primeira vez em 1965.
Nesse poema, Cora Coralina fala sobre a sua própria vida e os bastidores de sua trajetória na poesia. Como falamos no começo do texto, o seu primeiro livro foi publicado quando ela tinha 76 anos.
A sua experiência de vida também se nota pela sua escolha de palavras, que refletem a sabedoria que apenas o tempo pode nos conceder.
Em Ressalva, há a presença de uma metaliteratura, onde Cora fala sobre o seu próprio conteúdo. Ela transmite a sua visão sobre a própria criação: não são versos nem poesia, é “um modo diferente de contar velhas estórias”.
10. Cora Coralina, Quem É Você?
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
Nasci numa rebaixa de serra
entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.
Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.
Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentroda imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.
Numa ânsia de vida eu abria
o vôo nas asas impossíveis
do sonho.
Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia
caída e a república
que se instalava.
Todo o ranço do passado era
presente.
A brutalidade, a incompreensão,
a ignorância, o carrancismo.
Esses versos foram retirados do poema Cora Coralina, Quem É Você?. Nessa obra, a poetisa narra o contexto histórico e cultural sobre a sua origem.
Conhecemos mais sobre sua família, a sua cultura, o contexto político do país, e também as dificuldades que superou para conseguir estudar e construir a vida que desejava para si mesma.
É uma bela obra para conhecer mais sobre Cora Coralina.
11. Assim Eu Vejo a Vida
A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
Esse é um poema autobiográfico onde ela também abre o jogo sobre algumas das experiências que enfrentou em sua vida. Eles funciona como um resumo de suas principais escolhas ao longo da vida.
Esse poema fala sobre força, superação e resiliência e traz uma grande lição: “o passado foi duro, mas deixou o seu legado”.
12. Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai de santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute benfeito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
Esse é um dos grandes poemas de Cora Coralina, que mostra a sua identidade de forma muito clara.
Quando fala sobre si mesma, Cora traz um contexto sobre as mulheres brasileiras do final do século XIX e o princípio do século XX , que tiveram uma criação voltada para a maternidade casamento, abandonando os estudos e se dedicando inteiramente à vida familiar.
No entanto, podemos perceber que as mulheres vão muito além disso, inclusive a própria Cora, que persistiu para viver da poesia.