Depois que o meu bebê nasceu, demorei para perceber (e aceitar) que eu não poderia ser a mãe que idealizava: aquela presente de corpo e de alma na vida do filho, que acompanha sua rotina diária de perto e sabe o que se passa em seu coração e em sua mente só de olhar para ele. Após um primeiro momento de negação e de revolta, me dei conta de que a boa mãe do século XXI se contenta em ser uma gestora competente dos serviços maternos.
Durante a gravidez, eu só pensava na poesia e no encantamento que via nas propagandas que passam na TV na véspera do dia das mães todos os anos. De algum modo eu acreditava que, quando eu desse à luz, como em um passe de mágica, tudo iria se ajeitar e o mundo se adequaria às minhas necessidades e às dele. Ninguém me avisou (ou talvez eu não tenha dado ouvidos) que o contrário ocorreria: nós teríamos de nos adaptar à realidade do mundo, doesse a quem doesse. Seria inescapável: eu seria obrigada a entrar para o time de mães que terceirizam a maternidade.
Como não tinha jeito de ser diferente, decidi que delegaria com maestria minhas funções de mãe, já que eu não poderia, nem queria, abrir mão de continuar sendo também uma profissional. Da mesma forma que o meu bebê, o mercado continuava exigindo minha presença de corpo e de alma. Nesta competição, quem perderia diariamente, sem dúvida era eu: dividida e esquartejada em mil pedaços para dar conta de tudo.
Passados os quatro lindos e caóticos meses de licença-maternidade, acompanhando cada evolução, cada suspiro, cada choro, cada sorriso, cada balbuciar, passando noites em claro com cada cólica do meu filho, acabou a ilusão. Eu já estava decidida a contratar uma babá. Calculando prós e contras, concluí que não queria colocar meu bebê com cinco meses numa creche, com a saúde ainda tão frágil, dividindo o espaço com várias crianças e exposto aos mais variados tipos de vírus. Preferia que ele ficasse guardadinho em casa, com atenção exclusiva, pelo menos até os 2 anos.
Mas não me contentava em achar uma babá que fosse apenas responsável, de confiança e amorosa. Já que era para delegar, que fosse em grande estilo, para alguém moldado “à minha imagem e semelhança”, enquanto eu passava oito horas por dia atendendo os interesses de uma empresa. Eu precisava achar uma profissional apta e aberta a aprender tudo o que aprendi nos 9 meses de gestação “estudando” a melhor forma de ser mãe. Alguém que compartilhasse comigo (ou pelo menos pudesse entender e reproduzir) os mesmos valores, filosofia de vida e conhecimentos de psicologia infantil que adquiri lendo de “A encantadora de bebês” a “Crianças francesas não fazem manha”.
Obviamente eu não encontraria ninguém “pronta”. Era preciso dar um treinamento de qualidade à escolhida. E manter uma gestão consistente ao longo de toda a jornada. Então, desenhei os pré-requisitos da candidata, tracei um plano de trabalho e um cronograma. Foram longos meses de procura, dezenas de entrevistas e checagem de referências, eu me transformei numa diretora de RH da melhor qualidade. E funcionou, encontrei a babá dos sonhos de muitas mães, e fiz dela a babá certa para mim (com eternos ajustes, claro).
- Comportamento: Blackface: o que é e por que é uma prática racista
Dois anos depois, estava eu lá novamente, pesquisando todas as metodologias de ensino para achar a escola mais qualificada para o meu menino. Visitando os espaços, conversando com as diretoras pedagógicas. Paralelamente, estudava toda a logística necessária para conseguir fazer com que meu filho conseguisse chegar e voltar da escola de maneira segura. (Sempre me perguntei porque nunca nenhum empresário investiu numa escola que funcionasse em horários alternativos ao clássico de 8h às 18h, já que grande parte das pessoas trabalha no mínimo até as 18h, e o trânsito está cada vez mais caótico). Escalei um batalhão para ajudar e desenhei o rodízio entre eles: além do meu marido, avós maternos e paternos, titios, taxista-amigo…
Sou mesmo assim do tipo que encara tudo na vida como uma missão, um dever de casa. E não poderia ser diferente com a maternidade. Afinal, a minha formação, como a da maioria das mulheres da minha geração, foi voltada para ser uma profissional racional e eficiente. Durante toda a minha vida fui treinada para satisfazer esse modelo de sociedade que comemora com tanto entusiasmo o dia das mães mas abandona as mulheres-profissionais sem dó nem piedade quando elas de repente se tornam mães.
Passei mais de 30 anos me preparando para o tal mercado de trabalho. Estudei nos melhores colégios, vivi no exterior para aprender falar uma segunda língua fluentemente, e depois de formada passei uma década inteira me dedicando exclusivamente à vida profissional, com direito até a mudança de cidade, bem distante da família e dos amigos de infância. A partir do último ano da faculdade, quando ainda era estagiária, passei a trabalhar de 10 a 12 horas por dia. E, sem reclamar, fazia meu ofício, feliz e interessada, abria mão de horas de lazer e de sono.“Afinal, jornadas de 6 ou 8 horas é para os fracos, caretas e medíocres”, pensava eu… Até me tornar mãe e me tocar que, depois dos 4 meses de licença-maternidade, a vida com filho continua e eles seguem bastante dependentes ao longo de muitos e muitos anos. Mas o mercado de trabalho olhou para mim com um filho no colo e disse: “se vira”.
E eu me virei: juntei recursos não sei de onde para conseguir pagar o número de profissionais e horas extras que a PEC das domésticas exige; me virei do avesso para dar uma escapada entre uma reunião e outra da escola para levar o meu bebê ao médico e ao dentista; levei serviço para casa e trabalhei de madrugada. E sei que ainda vou precisar de muita boa vontade de chefe para poder assistir apresentação do meu filho na escola e contar com a disposição de avós para acompanhar a adaptação do meu pequeno em um novo colégio, caso precise; além de contratar outros tantos profissionais para, quem sabe, dar aulas de reforço a ele (já que eu provavelmente não vou poder auxiliá-lo em seus deveres de casa com a freqüência necessária).
Não vou ser hipócrita, sei que, na verdade, faço tudo isso para não abdicar de mim mesma. Trabalhar, para as mulheres da minha geração, não é apenas uma necessidade de independência financeira, mas uma questão de realização pessoal. Ser profissional faz parte da minha identidade, e abdicar dessa faceta seria como decepar um braço ou um perna. Pena que sejam horas tão excessivas, mas eu amo trabalhar. Mais do que querer dar tudo do bom e do melhor para o meu filho (colégio, médicos, viagens, festas de aniversário, aulas de inglês, natação, judô), eu preciso do emprego para não ficar à míngua assistindo de camarote o meu marido decolar na carreira enquanto eu falo só de mamadeiras e fraldas. Quero continuar tendo aquele sentimento de euforia ao achar uma solução criativa para um problema da empresa. Gosto da vida social diária que tenho com os colegas de trabalho. É delicioso voltar para casa com um desafio interessante e chegar no dia seguinte com uma boa idéia. E eu queria continuar sentindo orgulho de mim mesma ao conquistar um novo posto ou obter um merecido aumento de salário. Tenho necessidade de estar sempre ligada no mundo, nos fatos, aprendendo, contribuindo.
Sim, abdiquei de ver meu filho sorrir em diversos momentos, dar o primeiro passo, completar a primeira frase, de ampará-lo imediatamente após uma queda. Mas chego em casa com uma saudade tão grande, que não sobra espaço para ficar nervosa ou irritada com ele. Eu sou toda amor, apesar do cansaço. Tendo outras fontes de prazer e felicidade além do meu pimpolho, talvez eu tenha lhe poupado de, no futuro, sufocá-lo por carência ou cobrança disfarçada de amor. E quem sabe eu esteja me prevenido de virar refém da tal “síndrome do ninho vazio” quando finalmente ele crescer e partir para a sua vida própria, independente e autônomo.
Verdade que ainda sonho com a jornada de 6 horas. E às vezes ainda me revolto contra esse sistema que passei a vida idolatrando e que agora age como se ter filhos fosse um problema exclusivo meu e de quem mais escolheu ser mãe. Definitivamente não é. Crianças são de responsabilidade coletiva, de toda a sociedade. Nossos filhos são potenciais mãos de obra futura, que dependem da família para se tornarem gente ética, responsável e com uma boa formação. Que tipo de ser humano cheio de carência do afeto materno e paterno, delegado a segundo plano, aos cuidados de terceiros, a sociedade está produzindo para seu futuro? Como chegarão ao mercado? Quantos chegarão lá, sem antes embarcarem nas drogas e outros vícios no meio do caminho, pra tapar o buraco que a mãe ausente deixou?
Antes de ir longe demais com reflexão, retomo a concentração no trabalho, me dispo da culpa e do pesar, e mantenho o foco em me sentir realizada de ser, ao menos, uma boa administradora dos serviços maternos. Nos finais de semana, feriados e madrugadas, tento compensar a falta física e me esforço bastante para manter o forte vínculo e a intimidade construídos durante os ínfimos meses da licença-maternidade.
___
Fonte: Brasil Post