Sonhei com uma garota que usava vermelho no cabelo esvoaçado e azul nos olhos grandes. Estávamos em uma multidão de pessoas desconhecidas – o tipo mais solitário de multidão. Decidi que seu nome seria Paixão porque andava rápido e, conforme se aproximava, mandava minha sanidade para longe. Apesar de sorrir, Paixão parecia cansada de enxergar, escancarado em muros, postes e posts os pedidos desesperados de “mais amor, por favor”.
Paixão, apesar de sorrir, parecia desapontada: havia sido colocada de lado, substituída pela irmã pacífica, de águas calmas e sorrisos mansos: Amor. Apesar de terem saído do mesmo ventre e andarem juntas por muito tempo, Amor sempre durava mais que Paixão na vida das pessoas.
Amor era fácil de lidar. Seus ideais, nobres e doces, lhe permitiam perdoar quase tudo. Apesar de cega, fazia com que todos aqueles que a conhecessem pudessem enxergar anos e anos à frente do tempo. Paixão, não. Rebelde, inconsequente e fervorosa, nunca gostou de pensar demais: vive o momento. Sabe que o futuro é incerto porque assim é sua natureza: incerta, errante, passageira, com data de validade impressa no rótulo – muito por culpa de sua irmã, que a maldizia por aí. A pobre ruiva, veja só, já foi utilizada como álibi para diversos crimes. De passional, porém, as atrocidades não tinham nada.
O problema é que Amor se deixava ser levada para onde bem entendessem – especialmente nos últimos tempos, quando decidiram inventar uma série de regras para ela: só deveria pertencer a um casal de cada vez, não poderia ocupar o mesmo espaço que Paixão por muito tempo e, para ser considerada real, precisaria estar presente para sempre. Sendo assim, todos os defeitos e pecados sobrariam para Paixão.
Juntos, enquanto a multidão continuava passando pro nós, sentamos no chão. Tentei preencher nosso silêncio com qualquer coisa e falhei. Era culpa dela: sua presença tende a deixar qualquer um mudo. Me beijou e sua boca tinha gosto de vida e calor.
Tentei tocá-la e acordei, sem nenhuma lembrança do sonho. Tudo só passou a fazer sentido quando, andando por aí, encontrei mais um muro pichado com corações que suplicavam uma metade perfeita.
Até encontrá-la de novo em outro sonho, torço para que um dia todo mundo possa dar o valor que Paixão merece – e, mesmo seu nome jamais seja escrito nos muros do mundo, ela possa ter o mesmo valor de sua irmã.
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Via: Do Outro Lado Da Rua