Para viver, o homem precisa dar sentido às coisas. A esse procedimento, chamamos de valorar ou valoração, uma faculdade exclusiva de nós, humanos. Nenhum objeto em si mesmo carrega consigo algum valor. Um objeto é um objeto apenas. Um pássaro engaiolado, por exemplo, por desconhecer o valor positivo da liberdade, não é capaz de valorar. A angustia que alguns sentem ao vê-lo enjaulado não corresponde ao sentimento do animal, mas de quem o observa. Se liberto, não mudará o curso de suas ações por temer a experiência negativa do encarceramento. A vida dentro ou fora da gaiola lhe é indiferente. O pássaro vive apenas. Também não o aflige a ideia de que um dia morrerá. Quando esse momento chegar, não haverá para ele nem choro nem vela nem fita amarela. Não haverá, de igual maneira, quem lhe prantei a partida, nem saudades de filhos, cônjuges, parentes, amigos e agregados. O pássaro morre apenas.
Ao contrário do animal, o homem necessita valorar para permanecer vivo. Basta uma mera depreciação de seu capital valorativo para fragilizar sua segurança emocional e comprometer sua saúde física e psíquica. Todos somos, sem exceção, inseguros. Para nos mantermos agarrados à vida, precisamos atribuir qualidades aos nossos atos, gestos, pensamentos, sentimentos, comportamentos, compromissos, desejos, ao prazer, à alegria, à beleza, às pessoas e a todas as demais coisas que nos cercam, reais ou imaginárias, porque nada disso terá sentido para nós se não for valorado. É a valoração que nos move para o bem ou para o mal, e a sua ausência, para a indiferença. O homem sem valor é um pássaro, exceto por um único detalhe: nenhum bicho, por mais alquebrado que se encontre, põe fim à própria existência. Antes, lutará para mantê-la.
Semana passada, uma professora, minha conhecida, retirou-se da vida. Deu um basta a tudo isso que, na sua avaliação, passou a não ter importância alguma para permanecer por aqui. Agiu como se, de repente, tudo o que antes era tudo, agora é nada. Radicalizou. Nem mesmo a experiência da maternidade – um valor sublime para a maioria das mulheres – impediu-a de desvalorizar sua própria existência. Em vez de valorizar a vida, supervalorizou a morte.
— Complicado, né?! Também acho.
Quando adolescente, uma das meninas mais belas de meu bairro, cobiçada por meninos de todas as gerações, sonhava em se casar: queria ter muuuuitos filhos para que seus filhos tivessem muuuuitos filhos, dizia ela. Se alguém lhe perguntasse o que era felicidade, respondia sem titubear: ser muuuuito avó. Sonhava com esse dia porque se via na figura de uma grandmother.
E num é que conseguiu: aos quarenta, recém-completados, já é “triavó” (não trisavó, ainda não tem idade para isso). Só não está completamente feliz porque – segundo me confessou recentemente –, meu marido caiu fora, num era tão garanhão como pensei, mas já estou providenciando outro, enquanto posso…
— Misericórdia!
A lindinha de meu bairro, em vez de valorizar a morte, supervalorizou a vida.
Por que superestimamos tanto certas coisas de menor valor em detrimento de outras mais significativas, como a própria a vida, por exemplo?
Decerto que não tenho respostas e duvido mesmo que alguém as tenha. O que posso dizer é que, em ambos os casos, a valoração das coisas em derredor de suas vidas definiu o destino tanto da professora quanto da minha lindinha quarentona “triavó”. Valoração feita, evidentemente, por cada uma delas, porque, conforme salientamos, somos nós quem atribuímos valores negativos ou positivos a todas as coisas que nos circundam. Somos nós quem escolhemos o traçado e a coloração da pintura de nossas vidas. O mundo apenas se encarrega de emoldurar.
O segredo para tais questões está exatamente em saber separar o trigo do joio, conforme nos ensina essa belíssima parábola cristã. Ao lado do trigo, o joio danoso também crescerá forte e vigoroso, como crescem ervas daninhas nos jardins dos quintais de nossas almas. É no tempo da colheita que devemos, com discernimento e sabedoria, separar aquilo que enleva o espírito daquilo que o entristece.
— Difícil, né?! – Muuuuito, mas plenamente possível!
Mesmo assim, permanece o mistério por trás da razão de nossas escolhas: por que escolhemos caminhos tenebrosos em detrimento de outros mais luzidios? – Há milênios, sábios, filósofos, psicanalistas, psicólogos e tantos outros tentam obter uma explicação para esse modo de agirmos assim, mas sem resultados satisfatórios. Como dizia o saudoso Mário, pai de uma muuuuito amiga minha, a vida é mesmo uma “máquina traiçoeira”.
Uma resposta plausível, mas jamais definitiva, se encontra aí mesmo, na valoração das coisas da vida. Valorar é tarefa insidiosa e perigosa porque, na maioria das vezes, valoramos sem saber, inconscientemente. Amanhecemos amando jabuticabas e, no dia seguinte, meio que “virado no cuscuz”, como diz aquela minha amiga, filha do saudoso Mário, declinamos esse mesmo gostar. Isso se dá porque tanto a euforia quanto a melancolia resultam de uma profusão de sentimentos voláteis que revelam, quando constantes, aspectos significativos de uma alma perturbada. Somos, sim, perigosamente instáveis (A loucura é amante da razão: dormem juntas, apesar de viverem em casas separadas). Para me manter equilibrado, cuido de fugir, sempre que posso, tanto da euforia “porra-louquice” quanto da melancolia “rebelde sem causa”. Parafraseando a canção, diria que rezo para ter uma vida tranquila com sabor de fruta madura.
Hoje, caros amigos leitores, procuro eternizar-me no instante. Digo para mim mesmo todas as manhãs: o que deixei para trás não me pertence. Já não sou mais o mesmo de ontem. Aquele de antes é apenas um rastro de mim: um retrato em preto e branco ou colorido que traz as pegadas de meu tempo. Nada além disso. De igual forma, o que está por vir também não me diz respeito. É apenas uma promessa, um esboço do que poderia ser. Assim, de concreto mesmo só me resta o presente. Sou aquilo que o agorinha do instante me conceder.
Decerto que não quero, com esse pensamento, negar a contribuição do passado, do meu passado, para a formação do que sou hoje e do que serei amanhã. Não se trata disso em absoluto. Conforme escrevi em “O tempo é da alma”, ensaio publicado anteriormente aqui mesmo em “O Segredo”, tanto o passado quanto o futuro são tempos que não existem no mundo. Tudo é presente! A memória que trago de uma vida que se foi, de um outrora, nada mais é do que a reconstrução personificada e presentificada do que já aconteceu. O antes somente existe para o eu quando ele o recupera e o traz para o agorinha do instante, para o aqui e agora. O tempo é da alma, como diz Santo Agostinho.
Tento aplicar essa filosofia em todos os aspectos relevantes desta minha existência. Faço uso dela até mesmo em questões delicadas, como relacionamentos amorosos, por exemplo.
Quem nunca sofreu por amor, que atire a primeira dor.
Em meu último relacionamento, a dor encravou-se n’alma feito unha latejante. Sabe aquele tipo de amor alma gêmea que você diz “chegou para ficar”, e num ficou. Foi assim. Desgraçou-me por um bom tempo! Sofri abismos porque, naquela ocasião, desconhecia a natureza imorredoura do instante, que se eterniza sempre a cada reencontro. Hoje sei que o amor…, ah, o amor…, o amor somente posso tê-lo num balanço de rede sob varandas d’alma.
Depois dessa lição, dei-me conta de que, ao eternizarmos o amor para além do instante, corremos o risco de, também, eternizar a dor. Assim, a cada encontro, despeça-se do ser amado como se nunca mais fosse reencontrá-lo, e quando ele regressar na manhã do dia seguinte, ame-o com mais intensidade do que quando o amou anteriormente, para que tudo seja infinito enquanto durar. – Não é esse o sentido de um dos versos famosos do “poetinha” Vinícius? – Acho que sim, né?!
Como estou hoje meio poético e musical, vai aí, para você refletir, querido leitor, mais um trecho de uma sábia e bela canção: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanha, porque se você parar pra pensar, na verdade não há”.
É difícil conceber a vida dessa maneira?
Claro que sim, e muito, mas não impossível. O princípio aqui aplicado é um pouco parecido, mas não o mesmo, com o dos anônimos do álcool, do sexo, dos que amam demais… – Um dia por vez!
“Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir umas das outras”. Eis aí o segredo, a Oração da Serenidade. Para que isso funcione, é preciso exercitar o quanto antes o desapego, porque, contradizendo o mestre Improtta, “o tempo ruge e a Sapucaí não é tão grande assim”.
Entretanto, tal maneira de pensar e agir diz respeito tão somente às coisas da alma, da nossa sacrossanta intimidade, do nosso interior que, como a casa de meu Pai, tem muitas moradas. É evidente que nada disso se aplica à vida lá de fora, repleta de valores de outra espécie, morais, sociais, políticos… Esses, apesar de indiretamente nos afetar íntima e emocionalmente, são bem mais fáceis de se lidar, porque seu contornos, melhormente delineados, guia-nos para a uma solução mais racional e pacífica de seus conflitos.
De certo mesmo, o que temos é um coração que hoje bate no peito, mas que se transformará em cinzas nalgum dia, e uma alma que traz a memória de Deus. Entristeci-me muito ao saber da moça que partiu, mas também alegrei-me bastante ao recordar de minha lindinha quarentona “triavó”. É preciso praticar a velha e valorosa filosofia do “seguir adiante sempre”. Assim, a cada dia faço o que diz o verso do Pessoa na pessoa do Álvaro: “semiergo-me enérgico, convencido, humano, e vou escrever estes versos em que digo o contrário”.
Fazer o que, né?!, sou homem, não sou pássaro.
— E você?