Em entrevista à IstoÉ, a pré-candidata ao Senado pelo Distrito Federal falou sobre como encara a questão do aborto no Brasil e como enxerga a decisão norte-americana de derrubar o direito.
Considerado tabu em múltiplas sociedades, falar sobre o aborto envolve uma sucessão de discussões sobre direitos e deveres (tanto do Estado quanto das mulheres) que nem sempre são bem aceitos por setores conservadores. No Brasil, o “aborto legal” é uma expressão que descreve a dicotomia entre o marco punitivo e as políticas públicas criadas.
Ao mesmo tempo em que o aborto é considerado crime contra a vida de acordo com o Código Penal de 1940, é permitido em algumas exceções, como gestação resultante de estupro, casos em que a vida da mãe está em risco e quando o feto é diagnosticado anencéfalo. A recente decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos de derrubar o direto à interrupção gestacional acabou inflando a política conservadora, tanto no Brasil quanto no mundo.
Em entrevista à IstoÉ, a pré-candidata ao Senado pelo Distrito Federal e figura controversa, Damares Alves, ganhou espaço para falar sobre o assunto. Depois de comandar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos sob a cartilha antiaborto, negando dados que apontam que a interrupção clandestina de gravidez é a quinta maior causa de morte materna no Brasil, a pastora evangélica comemorou a decisão da Suprema Corte estadunidense e prevê que outros países sigam o mesmo caminho.
Alves explica que a legalização do aborto nos Estados Unidos fez com que existissem mudanças de conduta de outras nações quando lidavam com o assunto, e que esse recuo possa ajudar com que aqueles que são a favor da criminalização da interrupção possam rever suas leis. Mesmo assim, a pastora acredita que, aqui no Brasil, essa mudança não tenha tanto impacto, já que defende que o Congresso “não tem ânimo para modificar a legislação”.
A pré-candidata afirma que a sociedade brasileira não quer entrar nessa discussão, mas defende que é “em esmagadora maioria” contra o aborto. Para ela, as mulheres preferem debater assuntos como políticas públicas familiares, combate ao estupro e prevenção à gravidez. Outro ponto apontado por grande parte da sociedade como complexo, é a defesa de uma investigação policial da vítima de estupro em casos de gravidez. Alves defende que essa prática seria apenas para “pegar o estuprador”, já que acredita que o Estado esteja bancando “o aborto de bebês de estupradores em série”.
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Aborto no Brasil
Segundo estudo “A verdade do estupro nos serviços de aborto legal no Brasil”, durante muito tempo a discussão de a quem caberia a descrição de uma mulher como vítima de estupro foi conduzida. Ela mesma poderia ser testemunha da violência que sofreu, ou caberia à polícia, registrando documentos e conduzindo uma investigação? Ao mesmo tempo que nosso Código Penal estabelece a ausência de punição, não deixa claro como reconhecer nestes casos a “verdade do estupro ou do risco de vida da mulher”.
Para demarcar os limites e fronteiras entre risco à saúde e risco à vida da mulher, médicos organizaram práticas e rotinas de laudos e arquivos, mas em casos de estupro, a disputa moral acabou encontrando espaço. Neste ano, o Ministério da Saúde lançou um “manual” antiaborto, com informações consideradas falsas por especialistas, e que contradizem não apenas a história, mas também a legislação brasileira.
Atualmente, as mulheres não precisam registrar nenhum boletim de ocorrência ou provar que tenham sido vítimas de estupro para que possam interromper uma gestação fruto de violência sexual, mas sob rédeas rígidas e antiabortistas, diversos setores e autoridades têm tensionado a legislação, buscando criar precedentes para a criminalização de qualquer tipo de aborto.
“Manual antiaborto” e críticas
Chamado de “manual antiaborto”, o documento do Ministério da Saúde “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”, sequer saiu do papel e já recebeu duras críticas de órgãos importantes do país. Segundo reportagem do Yahoo, algumas afirmações são falsas, e além de induzir pacientes ao erro, pode causar mudanças judiciais em casos de aborto que já são legais.
Na 14ª página do manual, a pasta afirma que “não existe aborto ‘legal’ como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos”, e que existiria apenas o “aborto com excludente de ilicitude”. Para especialistas, essa informação é falsa, existe aborto autorizado por lei, possível de ser realizado dentro da legalidade, e sem nenhuma forma de punição.
Outra afirmação que recebeu críticas foi a que os profissionais de saúde supostamente teriam “segurança jurídica para, atuando em conformidade com as diretrizes e princípios de seu código de ética, promoverem a notificação de quaisquer crimes às autoridades competentes”. Essa também é apontada como uma informação falsa, e que o único caso em que as autoridades policiais podem ser notificadas, é quando existe autorização da vítima.
A Rede Médica pelo Direito de Decidir publicou um documento explicando que o manual do Ministério da Saúde prejudica o direito ao procedimento do aborto legal, e que investigar vítimas de estupro é “tortura psíquica do Estado brasileiro”. Dentre as outras afirmações apontadas como falsas estão: suposta objeção de consciência do médico para realizar aborto; a forma como utilizar misoprostol; e a suposição de que telemedicina é ilegal.
Nos casos em que o médico afirma objeção de consciência, o hospital precisa oferecer outro profissional que realize o procedimento previsto em lei, e esse não pode ser um impeditivo para o acolhimento e para a interrupção gestacional. No manual, a pasta afirma que o misoprostol (ou Cytotec) é o medicamento mais utilizado, e que seu uso a cada seis horas mostra elevadas taxas de sucesso. Mas especialistas garantem que a informação está errada, a combinação de mifepristona e misoprostol é a melhor opção, com 98% de taxa de sucesso.
Por fim, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo) atestam a segurança e recomendam o uso da telemedicina para garantir o acesso ao aborto ainda nas primeiras semanas de gestação. Os órgãos apontam que qualquer interpretação contrária, que não tenha base científica, pode ser qualificada como discriminação de gênero e obstáculo indevido no acesso à saúde.