O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) identificou a prática de fraturar os dedos das mãos de pessoas encarceradas em cinco estados do país. Essa forma de tortura foi constatada graças à atuação da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), vinculada ao Ministério da Justiça.
Carolina Barreto Lemos, advogada e coordenadora do MNPCT, revelou que o órgão observou a disseminação dessas ocorrências em locais onde a FTIP realizou intervenções, como Rio Grande do Norte e Ceará. Também há registros de presos com dedos quebrados em Roraima, Amazonas e Pará.
“Por óbvio, isso é uma forma completamente ilícita, não é algo que possa se justificar a partir de nenhum viés, não há nenhuma justificativa legal, isso se configura muito claramente como um crime. Um crime de tortura, porque é uma forma de castigar, de impor um castigo ilegítimo, injustificado, além do castigo que é a própria privação de liberdade”, avalia a advogada. Ela acrescenta que fraturar os dedos vai contra os padrões de uso proporcional da força.
A FTIP, liderada por policiais penais federais, é mobilizada para resolver crises, motins e rebeliões, controlar distúrbios e restabelecer a ordem e a disciplina nos sistemas prisionais. A força-tarefa foi utilizada pela primeira vez no país em 2017, na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, durante uma crise que resultou na morte de 26 presos.
A advogada destaca a declaração de Mauro Albuquerque, apontado como um dos responsáveis pela técnica de fraturar dedos. Durante uma audiência pública na Câmara Municipal de Natal (RN) em 12 de setembro de 2017, quando ele era secretário estadual de Justiça e da Cidadania, Albuquerque defendeu a ação. Essa informação consta em um relatório produzido pelo MNPCT em 2019.
Na audiência, Albuquerque afirmou que “quando se bate nos dedos — falo isso não é porque não deixa marca nos dedos, não… porque deixa marca — é para ele não ter mais força para pegar uma faca e empurrar num agente [policial], é para não ter mais força para jogar pedra”, aponta o relatório.
De acordo com a coordenadora do Mecanismo, a FTIC não se limitava a realizar intervenções durante crises específicas, mas também oferecia treinamento para policiais penais nos estados, o que resultou na repetição dessas ocorrências mesmo sem a presença da força-tarefa.
“E, com isso, disseminam-se as técnicas além da sua atuação, a própria técnica de quebrar os dedos. Tanto é que, no fim do ano passado, em novembro, o órgão foi ao Rio Grande do Norte, que era o local que teve treinamento pela FTIP, apesar de a força não estar lá mais naquele momento, e identificou novamente [essa técnica] sendo usada”, relatou Lemos.
Tortura
De acordo com a coordenadora do MNPCT, essa forma de tortura ainda persiste, uma vez que a força-tarefa continua em operação, embora sob outro nome.
“A equipe não deixou de existir, ela mudou de nome. Atualmente, está sendo chamada de Focopen, que é Força de Cooperação Penitenciária. Se não me engano, (…) ela continua atuando, e, até onde a gente saiba, partindo dos mesmos parâmetros anteriores”, afirmou a coordenadora do MNPCT.
Marina Araújo, presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT) do Ceará, confirma que a prática de fraturar os dedos das pessoas encarceradas não é um incidente isolado no estado. Ela destaca que a tortura nas unidades prisionais cearenses é um fenômeno reconhecido há alguns anos como um padrão sistemático.
“Tanto quebra de dedos como posições de tortura são identificadas, inclusive, como práticas que estão institucionalizadas, como sanções disciplinares que as pessoas internas hoje têm sido submetidas pela Administração Penitenciária a cumprir como procedimento disciplinar”, afirma Araújo.
No ofício encaminhado ao Governo do Estado do Ceará em 6 de julho, a CEPCT, juntamente com outras entidades de combate à tortura, reporta 33 casos de tortura ocorridos durante o período de um ano, de julho de 2022 a junho de 2023. Esses casos foram recebidos pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.
“O contexto de tortura foi identificado por diversos órgãos locais e familiares, tem sido denunciado exaustivamente, cotidianamente, e esse cenário já foi documentado e comprovado em diversos relatórios de órgãos, inclusive nacionais. Como exemplo, a gente tem um relatório de 2019 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura que identificou uma série de práticas de tortura e tratamento cruel dentro das unidades prisionais. Este mesmo cenário foi constatado pelo relatório de inspeções do Conselho Nacional de Justiça no ano de 2021”, revela Marina.
No ofício apresentado, também estão inclusas 26 mortes de detentos nas unidades prisionais do Ceará entre 2019 e 2021, com base em informações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além de cinco casos de suicídio de agentes penitenciários cearenses somente em 2021, conforme revelado no relatório da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do estado.
Marina destaca que os dados do CNJ, que mencionam as 26 mortes no sistema prisional do estado, são divergentes do que foi divulgado pelo governo, o que evidencia problemas em relação à transparência.
“Foram identificadas pela Secretaria de Segurança Pública somente quatro mortes no mesmo período analisado pelo CNJ. Então, tem um ponto que é sobre a transparência de dados e sobre acesso à informação de casos de tortura e de mortes nas unidades prisionais que precisa também ser destacado”, adverte a presidente da CEPCT.
O que diz o governo do Ceará?
A Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização do Ceará (SAP) divulgou uma nota em resposta às acusações, afirmando que as considera infundadas e repudiando a tentativa de ataque coordenado às políticas de ressocialização em larga escala no estado. Segundo a secretaria, o sistema prisional recebe visitas regulares de instituições fiscalizadoras, como o Poder Judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública, além de entidades de controle social. Além disso, o sistema possui uma ouvidoria própria, vinculada à ouvidoria do governo estadual.
O que diz o governo federal?
A Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) informou que está investigando as denúncias de tortura recebidas por meio da Corregedoria-Geral. A função principal da Corregedoria-Geral é investigar possíveis irregularidades, abusos ou condutas indevidas por parte dos servidores, além de implementar diretrizes para ações corretivas. O governo federal está empenhado em apurar os casos e tomar as medidas necessárias.
“Sobre o procedimento aberto na época do recebimento das denúncias de tortura, restam ainda sem confirmação de tortura. Em relação aos servidores mobilizados (servidores estaduais), foram instaurados PACs — Procedimento de Apuração de Conduta, que coleta informações preliminares, e o processo instruído é enviado ao estado para julgamento, não havendo indícios de tortura”, afirmou a pasta em comunicado.
Conforme a secretaria, em 2023, a FTIP passou por uma reestruturação em seu escopo de atuação e passou a ser chamada de Focopen (Força de Cooperação Penitenciária). “O novo modelo reflete a necessidade de reforço aos entes federados em quatro eixos: a) apoio à gestão prisional; b) gerenciamento de crises no ambiente prisional; c) treinamento e capacitação dos servidores; d) atendimento e classificação dos presos”, declarou.
A Senappen relatou que conduz ações de escuta com o intuito de realizar análises de situação, identificar necessidades e demandas, tanto das pessoas privadas de liberdade quanto dos servidores da execução penal, visando aprimorar os serviços penais.