São Paulo, 5 de abril de 2023
6h36
O telefone de Maiara Pimenta dos Santos toca ao chegar ao trabalho no centro da capital paulista.
Do outro lado da linha, uma notícia urgente: um fígado compatível para sua filha, Esther, de 2 anos, está disponível. É essencial dirigir-se imediatamente ao Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, situado a apenas quatro quilômetros de distância.
Maiara prontamente informa sua mãe, que se encontra nas proximidades com a pequena Esther, e as duas se encontram para seguir juntas. O marido, que estava trabalhando nas imediações do hospital, também é chamado às pressas.
7h
Diego, de 12 anos, e sua família recebem uma ligação que traz notícias semelhantes. Após seis anos na lista de espera, finalmente há um fígado disponível para o transplante.
Os pais do garoto são dominados por uma mistura de esperança e medo da decepção. Afinal, há apenas 11 meses, eles já tinham experimentado esse momento. No entanto, quando chegaram para a cirurgia, o órgão não pôde ser utilizado devido ao fato de que o doador havia testado positivo para a covid-19.
Com o passado influenciando o presente, eles se apressam a sair de Limeira, no interior de São Paulo, em direção ao Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, uma jornada de aproximadamente 160 km.
11h
Depois de completar seus exames, Esther é admitida no Hospital Sírio-Libanês, onde a cirurgia de transplante será realizada. Ao mesmo tempo, Diego e sua família chegam ao Menino Jesus para realizar exames pré-operatórios. Às 12h, Diego também é internado no centro de saúde particular.
Ambos continuam a receber atendimento no hospital público, que é administrado pelo Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês.
14h
O garoto é conduzido ao centro cirúrgico e retorna após 11 horas e 40 minutos, agora com um fígado novo.
15h
Esther é encaminhada para a sala de cirurgia e recebe anestesia. Por volta da meia-noite, a garota retorna ao quarto, reunindo-se com sua família após o procedimento de transplante bem-sucedido.
Histórias que se cruzam
No período de janeiro a junho deste ano, o Brasil registrou 1.103 transplantes de fígado, conforme dados da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos).
Dentre esses números, as histórias de Esther e Diego se entrelaçam não apenas pelos procedimentos que aconteceram no mesmo dia e no mesmo hospital.
Um único fígado doado foi dividido em dois para beneficiar as duas crianças, através da técnica conhecida como “split” (divisão, em português).
Na fila de transplantes unificada, a alocação segue critérios que incluem a gravidade do caso, com as crianças recebendo prioridade. Quando o órgão foi disponibilizado para doação, a equipe do cirurgião Eduardo Antunes da Fonseca, do Hospital Sírio-Libanês, foi acionada, uma vez que Esther ocupava a primeira posição na lista de espera.
Em seguida, os médicos identificaram que o fígado se enquadrava nos critérios para a técnica de divisão, e a parcela menor, correspondendo a aproximadamente 35% do volume total, seria designada para a menina. A outra parte do órgão seria alocada para a segunda pessoa compatível na lista de espera.
Curiosamente, Diego era a segunda pessoa na lista de espera e estava sendo tratado pela mesma equipe médica.
“A ordem da lista de espera é sempre respeitada” destaca Fonseca.
Transplante split de fígado
A estrutura vascular anatômica do fígado possibilita sua divisão em duas partes, cada uma mantendo plenamente suas funções naturais.
Graças à sua capacidade regenerativa, uma das partes do órgão cresce até alcançar o tamanho adequado no corpo.
A técnica de divisão amplia a oferta em uma fila que, na presente data, conta com 1.343 indivíduos aguardando a oportunidade de receber um fígado.
Os requisitos para aplicar essa técnica incluem, fundamentalmente, a disponibilidade de um doador adulto com idade até 40 anos e um fígado em excelentes condições clínicas.
“Não adianta fazer a bipartição de um fígado não tão bom que poderia ser usado inteiro em duas metades ruins.” Eduardo Antunes da Fonseca, cirurgião do aparelho digestivo no Hospital Sírio-Libanês
Quando o órgão está em ótimas condições, ele é alocado para pacientes que estão classificados com um risco mais elevado de mortalidade na lista de espera.
O fígado pode ser dividido em duas partes, podendo ser desiguais ou iguais em tamanho, o que, no último caso, permite beneficiar dois adultos.
No caso de Esther e Diego, a parcela menor foi direcionada à menina, devido à sua idade mais jovem, enquanto a porção maior foi destinada ao garoto, de acordo com as necessidades individuais.
A coincidência de ambos estarem sob os cuidados da mesma equipe médica simplificou a logística e permitiu o uso ágil do fígado, que permanece viável por até dez horas fora do corpo.
De acordo com os parâmetros estabelecidos para a técnica, Fonseca afirma que os resultados obtidos com o procedimento de divisão são equivalentes aos de um transplante de fígado completo.
No entanto, o risco aumenta na divisão devido a considerações técnicas, principalmente devido às pequenas estruturas que necessitam de reconstrução para conectar o novo órgão ao corpo do receptor.
Cirrose na infância
Esther veio ao mundo com um peso e tamanho inferiores aos considerados ideais para sua fase de gestação.
Durante os primeiros meses de vida, ela permaneceu abaixo dos padrões de desenvolvimento e apresentava um corpo mais flexível. No entanto, durante as consultas mensais com a pediatra, nada incomum era observado.
Somente no quinto mês, uma enfermeira do posto de saúde notou a coloração amarelada da pele da bebê. Apesar de uma série de exames realizados, nenhum problema foi identificado. Foi somente em uma noite, quando Maiara colocou a pequena para dormir por volta das 19h e adormeceu junto a ela, que algo incomum aconteceu.
“Eu acordei 1h30 com meu braço dormente, ela não tinha se mexido nem chorado para mamar” recorda.
No dia seguinte, a garota foi internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Menino Jesus e passou a receber cuidados da equipe de hepatologia. Nesse momento, os médicos já advertiram que, em algum momento, seria necessário um transplante de fígado.
Após uma breve melhora, Esther teve uma recaída em setembro do ano passado e entrou na lista de espera para o transplante. Ela recebeu o diagnóstico de cirrose criptogênica, uma condição na qual a causa da doença é desconhecida.
Tanto a mãe de Esther quanto um tio eram compatíveis com a criança, mas circunstâncias diversas impediram a doação de ambos. Uma amiga compatível só poderia doar com autorização judicial, pois não tinha relação de parentesco.
No dia em que o juiz concedeu a permissão para a doação, Maiara recebeu o telefonema do hospital, mas só ao chegar ao local descobriu que o órgão provinha de um adulto jovem que havia falecido.
“Fiquei feliz, mas ao mesmo tempo muito triste porque não conseguia imaginar que uma mãe perdeu o filho para a minha poder viver” expressa.
Seis anos de espera
Diego veio ao mundo com atresia de vias biliares, uma condição inflamatória que bloqueia os ductos responsáveis por transportar a bile produzida no fígado. Isso resulta na retenção do líquido e danos ao órgão. Uma cirurgia foi realizada para restaurar o fluxo, mas o transplante já era uma inevitabilidade.
Nos primeiros cinco anos de vida, o garoto estava estável, recebendo tratamento contínuo. No entanto, complicações relacionadas ao esôfago e aos pulmões desencadearam hemorragias e a necessidade de um cilindro de oxigênio.
Ele estava sob os cuidados do hospital da Unicamp, mas posteriormente foi encaminhado ao Hospital Menino Jesus, onde passou a fazer consultas mensais.
Seis anos atrás, Diego ingressou na lista de espera pelo transplante, um período de intensa expectativa para sua família.
![Transplante split: crianças são salvas com fígado dividido em dois em São Paulo](https://osegredo.com.br/wp-content/uploads/2023/09/transplante-split-de-figado-diego-12-anos-1693857029540_v2_750x421.png.webp)
“Ficamos todos ansiosos, aguardando o momento que chegasse. Ele ficava uns momentos triste, outros alegre, mas a ansiedade corroeu muito a gente” relata José Sebastião da Silva Lima, pai do garoto.
Em maio do ano anterior, quase houve a realização do transplante.
“Voltamos frustrados. Desse dia para cá, ficamos mais tristes porque o caso do pulmão dele ia se agravando.”
Quando finalmente a cirurgia aconteceu neste ano, a família recebeu a notícia pouco antes de que o fígado seria destinado a duas crianças.
“Fico feliz por ter dado certo para outra pessoa.”
Desde então, Diego tem tido uma recuperação satisfatória, experimentando ganho de peso e uma diminuição na dependência de oxigênio.