Rafaela Lima, de 23 anos, caminhava com seu cachorro pelo bairro onde reside, localizado no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, quando foi surpreendida pela chegada de carros da polícia, que estavam perseguindo dois suspeitos de roubo de um veículo. Tanto ela quanto seu amigo Gabriel Pereira foram abordados e conduzidos à delegacia.
A jovem, que é estudante de enfermagem, passou injustamente cinco longos dias detida no Centro de Detenção Provisória Feminino de Franco da Rocha. Em entrevista ao UOL, ela compartilhou sua experiência durante o período na prisão, até que finalmente foi libertada no dia 15 deste mês, por ordem judicial. “Tive que dormir no chão, convivendo com ratos e o constante odor de esgoto”, lamentou Rafaela.
Estava comemorando
Era domingo à noite, eu estava em casa com minha irmã e dois amigos, celebrando a conquista do novo emprego de Gabriel. Precisávamos levar meu cachorro, Rex, para passear, e Gabriel se ofereceu para me acompanhar, garantindo que eu não estivesse sozinha na rua.
Antes de atravessar a rua, parei em um canteiro que dividia a pista. Enquanto aguardava, observei um carro vindo na contramão. O motorista parou próximo a nós, e, instintivamente, percebi dois jovens saindo correndo do veículo. Fiquei assustada e segurei meu cachorro no colo.
Atravessei rapidamente a rua, e o som da sirene da polícia aumentou meu nervosismo. Puxei Gabriel para tirá-lo da rua e evitar um possível atropelamento. Ele me aconselhou a não correr, mas não consegui ouvir sua voz. Acabei me “escondendo” nas proximidades da rua, com medo de tiros.
As viaturas da polícia chegaram, os policiais com armas em nossa direção. Eles nos viram correndo e nos escondendo, claramente apavorados, mas permanecemos onde estávamos. Então, eles gritaram, nos acusando de sermos os culpados. Eu estava tão assustada que mal conseguia falar.
Quando nos levaram ao “paredão”, eu não sabia o que fazer, ainda segurava meu cachorro no colo. Fizeram várias perguntas, e no final, pediram para entrarmos na viatura. Argumentaram que era apenas para conversar com o delegado, e, assustada, concordei e entrei no carro.
Naquele momento, estava sem documentos e sem meu celular, já que o deixei com meu outro amigo. Rapidamente, um advogado particular foi acionado para nos representar.
Ao chegarmos à delegacia, fui conduzida a uma cela e tive a oportunidade de conversar com o delegado, relatando toda a situação. Entretanto, quando a suposta vítima compareceu à delegacia, ela afirmou que nos reconhecia com 100% de certeza. Foi então que soube que teríamos que aguardar a audiência de custódia no dia seguinte.
Passei a madrugada na cela, ansiosa e com medo do que estava por vir. No dia seguinte, à tarde, tivemos a audiência com a juíza. Nosso advogado apresentou um vídeo que mostrava nós dois passeando com o cachorro, mas a juíza argumentou que as imagens não eram conclusivas e decretou a prisão preventiva.
Nesse momento, fomos separados e nem tivemos a oportunidade de nos comunicar, pois nos mandaram manter a cabeça baixa o tempo todo. Fui então levada em um veículo da polícia para Franco da Rocha, enquanto Gabriel foi encaminhado ao CDP de Pinheiros.
![Presa Injustamente após passeio com cachorro: "Noites com Ratos"](https://osegredo.com.br/wp-content/uploads/2023/09/abre-rsz_rafaela-2-518x640-1.webp)
Senti na pele o castigo
Em Franco da Rocha, juntei-me a outras quatro meninas, e elas me explicaram que o primeiro dia era conhecido como ‘castigo’. Perguntei o que isso significava, já que inicialmente nos disseram que era uma espécie de adaptação ao lugar.
Rapidamente, descobri na pele o que esse ‘castigo’ envolvia. Assim que chegamos, ficamos sem comer, pois o jantar já havia sido servido. Mais tarde, nos deram um pedaço de pão duríssimo, quase impossível de mastigar, e um suco. E então, fui dormir.
No dia seguinte, o café da manhã demorou a ser entregue. Era mais um pedaço de pão duro, um leite com gosto de alho e uma substância que se assemelhava a café.
No banheiro, não havia cortina no chuveiro, então tínhamos que tomar banho umas na frente das outras, enfrentando a água gelada. Além disso, o vaso sanitário também ficava exposto para todas verem.
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Ao final da segunda-feira, fui conduzida ao pavilhão com as celas. Em nenhum momento, os funcionários se dirigiam a nós pelo nome; éramos chamadas apenas de ‘presa’ o tempo todo.
Ratos e cheiro de esgoto
No kit de higiene que me entregaram, faltavam a escova de dentes e o papel higiênico. Também não me deram toalha nem lençol. No pavilhão, as outras detentas me ajudaram a conseguir essas coisas.
Na cela onde fiquei inicialmente, havia cerca de 20 pessoas, mas aos poucos foi esvaziando. Na sexta-feira, éramos 14. Nas terças e quartas, tive que dormir no chão, tentando nos acomodar como podíamos, e me alertaram sobre a presença de ratos.
Uma noite, acordei de madrugada e vi alguns ratos passando. Eles eram grandes, pareciam gatos. Dormir no chão, com ratos e o constante cheiro de esgoto, foi muito difícil.
As mulheres na cela tinham o hábito de cheirar a comida antes de comer, que sempre vinha em marmitex. Todos os dias, o feijão tinha um forte cheiro de vinagre. Em uma ocasião, o marmitex inteiro estava com um odor azedo. Nunca imaginei que passaria por algo assim em minha vida.
Chegou a sexta-feira, e eu esperava receber meu alvará de soltura, mas ninguém havia me chamado até tarde. Eu estava desanimada, tendo recebido várias decepções. Enquanto tomava banho e secava meu cabelo, as companheiras de cela me avisaram que estavam trazendo meu alvará, que eu estava prestes a ser libertada. Até hoje, posso ouvir suas vozes me dando essa notícia.
Foi um momento de muita emoção e correria. Muitas das mulheres não tinham roupas íntimas, então deixei minhas coisas com elas e troquei por outras, como meu chinelo, que estava em melhor estado do que o delas.
Foi a primeira vez em minha vida que me senti completamente impotente, sendo tratada como se não fosse digna de respeito humano. Não era permitido sequer erguer a cabeça para olhar as pessoas. Tudo era feito mantendo a cabeça baixa o tempo todo.
Me sentia só
Eu não tinha conhecimento de nada que estava acontecendo do lado de fora, o que me deixava muito isolada e apreensiva lá dentro, cheia de medo. A pergunta constante em minha mente era: “Por quanto tempo vou ficar aqui?”. Minha esperança estava praticamente extinta, e é emocionante lembrar da sensação que tive quando finalmente saí e vi meu primo me esperando lá fora.
Minha família e amigos desempenharam um papel crucial em encontrar evidências para provar minha inocência. Eles prestaram depoimentos, localizaram um novo vídeo do assalto que mostrava os outros dois homens envolvidos e até trouxeram o rastreador de minha moto, que confirmava que ela estava em casa naquele momento.
No mesmo dia, reencontrei meu amigo Gabriel, que também havia sido preso comigo. Nós choramos intensamente. Eu precisava saber como ele estava, e o peso da culpa era avassalador, já que ele apenas havia se oferecido para me acompanhar enquanto eu passeava com meu cachorro.
A primeira coisa que fiz foi tomar um banho quente e, em seguida, desfrutar de uma boa refeição. Pedimos pizza e passamos um tempo conversando intensamente sobre tudo o que havia ocorrido na prisão.
Posteriormente, ao avistar uma viatura policial, meu coração disparou de susto. Agora, sempre que ando na rua, sinto uma apreensão quando as pessoas me observam, e meu amigo se emociona ao lembrar do que passamos.
Nunca desejei estar em evidência em lugar nenhum, e de repente, minha vida se tornou pública após ter sido injustamente detida. Essa, sem dúvida, foi a semana mais longa que já vivi.”
O que dizem as autoridades
- A investigação resultou na revogação da prisão. A SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo) comunicou em nota que “durante a investigação, foram coletadas evidências que respaldaram o requerimento de revogação da prisão do casal”. Esse pedido foi “submetido à análise do Poder Judiciário e foi acatado, levando à libertação do casal”.
- A SSP-SP informou que está investigando as circunstâncias dos acontecimentos e acompanhando os desdobramentos, incluindo as investigações relacionadas à conduta da Polícia Militar.
- A Polícia Civil esclarece que, dentro do prazo estipulado por lei para a conclusão do inquérito, continuou a realizar diligências em busca de imagens, testemunhas e outras evidências que pudessem confirmar a prisão dos indivíduos, mesmo após o reconhecimento feito pela vítima.
- A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) assegurou que opera “dentro dos limites legais, em conformidade com a Lei de Execução Penal e respeitando os princípios dos Direitos Humanos”. Além disso, a secretaria esclareceu que dispõe de canais para receber denúncias, incluindo a Ouvidoria, como forma de garantir a transparência e a responsabilidade em sua atuação.
- Quanto à alimentação na prisão, a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) afirmou que são oferecidas, no mínimo, três refeições por dia (café da manhã, almoço e jantar). A alimentação é cuidadosamente planejada, seguindo um cardápio previamente elaborado por nutricionistas para garantir o equilíbrio nutricional.
- A respeito da qualidade da comida, a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) informou que esta é avaliada diariamente por uma comissão de recebimento, composta por servidores responsáveis pelo gerenciamento e fiscalização do contrato, assegurando que os padrões de qualidade sejam mantidos.
- A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) afirmou que Rafaela recebeu os kits de higiene e inclusão padronizados pela unidade e que, durante seu período na instituição, “não houve registro de reclamações” por parte dela. No entanto, a secretaria não respondeu à questão sobre o espaço das celas para dormir.
- Em relação à presença de ratos, a SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) esclareceu que o CDP de Franco da Rocha passa por processos regulares de desratização e desinsetização. A última dessas ações ocorreu em 14 de julho deste ano.
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