Durante uma conversa com a médica no Hospital São Camilo, em São Paulo, a comunicadora Leonor Macedo, 41 anos, recebeu a informação de que o procedimento de inserção do DIU (dispositivo intrauterino) não poderia ser realizado na instituição devido aos valores religiosos.
Fiquei em choque declarou Macedo, compartilhando o caso no X (antigo Twitter).
Após a divulgação do relato, a instituição respondeu à publicação, confirmando que, de fato, por diretriz institucional, o local não realiza procedimentos contraceptivos, tanto em homens quanto em mulheres.
Quando é assim, orientamos que a pessoa busque a rede referenciada do seu plano de saúde que tenha esse procedimento contemplado explicou o hospital nas redes sociais.
Além da explicação pública, Macedo relatou que recebeu um contato telefônico da instituição. Durante a ligação, foi esclarecido que a recusa não estava relacionada a questões de gênero, já que homens que buscam o hospital para realizar vasectomia também não são atendidos.
Ela foi informada também de que o hospital autorizaria a inserção do DIU somente em situações graves de saúde, como no caso de endometriose.
Em comunicado à reportagem, o hospital reitera que, por ser uma instituição “confessional católica tem como diretriz não realizar procedimentos contraceptivos, em homens ou mulheres. Tais procedimentos são realizados em casos que envolvam riscos à manutenção da vida”.
No documento, a instituição esclarece que pacientes que buscam a Rede de Hospitais São Camilo e não enfrentam riscos à saúde são aconselhados a procurar na rede referenciada do plano de saúde para encontrar hospitais que tenham esse procedimento contratualizado.
Depois de compartilhar sua experiência nas redes sociais, Macedo enfrentou desafios para tornar pública sua história, pois recebeu críticas de pessoas que apoiaram a posição do hospital.
É uma hostilidade tremenda, o que torna difícil para que outras mulheres relatem ou denunciem o que passam nos consultórios afirma ela.
A equipe da Folha de S.Paulo buscou o Ministério da Saúde e a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, os quais afirmaram que não vão comentar o caso, uma vez que o hospital é privado.
Nesta quarta-feira à tarde, o Ministério retomou os comentários sobre o caso e esclareceu que, na verdade, a instituição recebe repasses públicos. Em comunicado, a pasta afirmou que o Hospital São Camilo é uma instituição filantrópica.
Pela sua natureza, recebe repasses públicos de acordo com a sua contratualização, seja com um vínculo municipal ou estadual.
Segundo Henderson Fürst, advogado e presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo), a política do hospital é inconstitucional, viola os direitos humanos e também restringe a liberdade dos profissionais médicos.
Fürst destaca que a diretriz vai contra o Código de Ética Médica, que não apenas assegura a autonomia do médico, mas também estabelece que os profissionais de medicina devem apresentar aos seus pacientes o tratamento mais adequado disponível.
O direito à saúde inclui também o direito ao planejamento familiar diz.
É um absurdo esse cerceamento que se faz a direitos de pacientes e da atuação dos profissionais de saúde declara ele.
Fürst lembra que o planejamento familiar está assegurado na Constituição Federal. Além disso, essa prática viola os direitos humanos.
O fato de ser um hospital confessional não pode cercear qualquer técnica que viabilize direitos fundamentais de saúde e que viabilize o planejamento familiar, que também é um direito de saúde, que também é um direito fundamental.
O advogado destaca ainda que os preceitos religiosos não podem sobrepor os preceitos do direito sanitário brasileiro.
Imaginemos o oposto. Uma religião que seja contra transfusão de sangue venha abrir um hospital. Nesse hospital só se poderiam fazer procedimentos sem transfusão de sangue? Isso é um hospital que está fadado a um cerceamento do exercício da ciência da saúde. E é o que está sendo feito neste caso.
O Dispositivo Intrauterino (DIU) é um pequeno dispositivo inserido no útero para impedir a fecundação ou a fixação do óvulo fecundado. Existem dois tipos de DIU disponíveis no mercado: o de cobre e o hormonal.
No primeiro caso, uma desvantagem é a possibilidade de aumentar o fluxo menstrual. No segundo, é comum que cólicas e o fluxo diminuam.
Segundo Fátima Marinho, pesquisadora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e assessora sênior da Vital Strategies, recusar às mulheres o acesso a métodos contraceptivos representa um retrocesso.
Métodos modernos são seguros e não são abortivos, a necessidade da mulher ou do casal ter um planejamento familiar é um direito afirma ela.
Marinho destaca que, embora o DIU seja um dos métodos contraceptivos de longa duração mais eficazes, apenas duas em cada cem brasileiras fazem uso desse dispositivo.
A pesquisadora esclarece que, de modo geral, há desinformação sobre o DIU, sendo um mito a crença de que seria abortivo.
O DIU moderno impede a fecundação do óvulo, nesse sentido não é abortivo. Os motivos religiosos também pesam devido ao mito do aborto e a crença de que não se deve usar métodos contraceptivos que não sejam os “naturais”, ou seja, os que têm menor eficácia esclarece ela.
Marinho destaca que ao longo dos anos os governos desenvolveram políticas de saúde para garantir esses direitos e promover o planejamento familiar. Como resultado, a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 revelou que mais de 80% das mulheres entre 18 e 49 anos afirmaram utilizar algum método contraceptivo.
A atitude do São Camilo ecoa a negativa do governo do Brasil em 2019 de não assinar o documento da Organização Mundial de Saúde (OMS), que firmava compromissos sobre a saúde sexual e reprodutiva das populações recorda ela.
A pesquisadora estima que, apesar do amplo uso de métodos contraceptivos no Brasil, mais da metade das gestações não são planejadas ou são indesejadas.
Existem muitas falhas no uso de métodos de curta duração, como os contraceptivos hormonais orais, preservativos, diafragma, tabela e contraceptivo de emergência, porque as mulheres esquecem de tomar a pílula, não compraram, esquecem o diafragma, erram na tabelinha, entre outros motivos declara ela.
Na opinião da pesquisadora, a posição da rede de hospitais contribui para o aumento das gestações indesejadas e dos abortos induzidos pela gravidez não desejada, estresse e depressão, ao negar o uso do DIU ou outros métodos contraceptivos de longa duração.
O esforço para garantir o direito ao planejamento familiar deve ser de todos na área da saúde. Não é uma questão de implantar ou não um DIU por convicção, mas de proteger a saúde das mulheres diz.