Na Páscoa de 1993, a novela Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, estava no ar há pouco mais de um mês. O autor Bruno Luperi, com cinco anos na época, ao receber seu ovo de chocolate, correu para o quarto com o irmão.
Juntos, subiram na cama e começaram a pisar no doce. Se o chocolate vinha do cacau, por que não pisá-lo, assim como seu avô ensinava na novela de maior sucesso daquele ano, mostrando o que fazer com o fruto?
Na segunda-feira, 22, uma nova versão de Renascer, agora escrita por Luperi, estreia na TV Globo, sucedendo Terra e Paixão, com direção artística de Gustavo Fernández.
Esta será a segunda adaptação do autor para uma obra de Benedito. A primeira foi Pantanal, que retornou às telas em 2022, alcançando um sucesso há muito não visto no horário das nove.
Além da recordação da travessura de criança, na memória afetiva de Luperi está seu avô – Benedito, aposentado aos 92 anos – rindo e chorando com os personagens da história e o ator Marcos Palmeira na sala da casa da família.
Palmeira, que na primeira versão interpretou José Pedro, agora assumirá o papel de José Inocêncio, o coronelzinho que se torna o grande produtor de cacau no sul da Bahia.
Às vezes, também me pego rindo, chorando ou conversando com os personagens. E eles respondem revela Luperi ao Estadão.
Artista visual e ex-diretor de arte, o autor de telenovelas agora consagrado – estreou em Velho Chico (2016), supervisionado por Benedito – reconhece que ao reproduzir os gestos do avô, está seguindo uma vocação.
Não sei o quanto eu escondi de mim que eu também era um contador de histórias Bruno Luperi
No entanto, ele pensava que a tarefa de adaptar uma obra de Benedito se encerraria em Pantanal.
Mas a Globo fez o convite para Renascer. Abriu a garrafa do cramulhão brinca, referindo-se a uma das histórias criadas pelo avô, presente na trama.
Adaptar uma produção de sucesso não é tarefa fácil. Enquanto Pantanal estava fragmentada no YouTube, Renascer, além de residir na memória dos espectadores que acompanharam a primeira versão, encontra-se completa no Globoplay, em boa qualidade – é a nona novela de arquivo mais assistida na plataforma.
As comparações serão inevitáveis. Alguém duvida que os aficionados por novelas assistirão às duas versões simultaneamente?
Além de examinar os capítulos originais, Luperi assistiu à totalidade de Renascer, ao contrário do que fez em Pantanal, onde limitou-se a acessar os textos.
Pantanal ainda tem uma lógica um pouco feudal. Cada um com sua propriedade. Não há uma estrada, uma vila, uma esquina. Então, a estrutura central dela foi muito mais próxima à original afirma.
Nesse contexto, a nova edição de Renascer demandou poucas adaptações adicionais.
A fase inicial do remake terá início nos anos 1990, justamente quando a praga vassoura-de-bruxa começa a impactar as plantações de cacau, um problema que o José Inocêncio da versão original só enfrentaria depois de já estar estabelecido.
Para encarar esse desafio, o personagem, interpretado na primeira fase por Humberto Carrão, será alguém à frente do seu tempo, conectado ao que na época era chamado de ecologia, preocupado com o manejo da plantação e a preservação do solo. Tudo isso para garantir sua prosperidade e ascender ao status de coronelzinho na região.
Para o autor, a tarefa de adaptar uma obra tão consagrada é comparável à de um cirurgião. É necessário deixar cicatrizes o menos grosseiras possível, mas com um grande impacto no resultado.
A novela foi totalmente alterada para permanecer igual. Meu “contrato” com o público é contar a história do José Inocêncio que, na finitude de sua vida, estará em conflito com seus filhos e irá querer se conectar com eles para entender qual o verdadeiro legado que ele deixará depois de uma vida de sacrifícios Bruno Luperi
Sai o padre, entra o pastor
Não apenas a narrativa sobre o cacau e as práticas agrícolas evoluíram nas últimas três décadas. A sociedade como um todo passou por transformações profundas, tanto econômicas quanto sociais.
Renascer não será anacrônica, perdida nos confins do mundo, como sugeria a música da abertura da primeira versão, que será substituída por “Lua Soberana”, interpretada pelas cantoras Luedji Luna e Xênia França.
Luperi fornece um exemplo bastante claro. Ele percorreu os lugares onde tudo ocorreu na primeira versão, viajando por dois mil quilômetros na região.
Visitou a fazenda que serviu de locação externa – para essa versão, devido a questões de custo e logística, quase tudo será reproduzido nos Estúdios Globo – e a Vila do Braço, onde ficava a casa da cafetina Jacutinga, papel que, no passado, foi interpretado por Fernanda Montenegro e agora será desempenhado por Juliana Paes.
A vila está quase abandonada. Muitos trabalhadores rurais foram para a cidade buscar trabalhos mais dinâmicos, atuar em outras áreas, fazer entregas, dirigir carros de aplicativos relata.
Benedito, autor de uma marca muito marcante, inseria em suas narrativas um universo distintivo. Ele criava personagens genuinamente humanos e brasileiros.
Em Renascer, ele abordou a superstição popular ao mencionar o cramulhão dentro de uma garrafa. Também desafiou os dogmas da igreja católica ao confrontar um padre conservador com um colega de formação mais revolucionário.
Luperi explorará os personagens para abordar temas como diversidade e intolerância religiosa. O Padre Santo, na contemporaneidade, iniciará de forma conservadora, mas suavizará suas convicções com o passar do tempo.
Já Lívio representará os cristãos de maneira mais abrangente, assumindo o papel de pastor. Além disso, teremos um personagem mulçumano (Rachid) e uma candomblecista (Inácia).
Vamos falar menos dos dogmas, daquilo do que nos separa, e mais sobre o que nos une. Criar pontes para com todos antecipa Luperi.
Outra personagem que causou grande impacto em 1993 foi a Buba, interpretada à época pela atriz Maria Luísa Mendonça. Segundo Benedito, ela era uma pessoa hermafrodita, o que hoje em dia é classificado como intersexual.
Em 2024, Buba será uma mulher transexual, interpretada pela atriz Gabriela Medeiros. Isso certamente causará menos impacto, não na trama – pois ela se envolve romanticamente com um dos filhos de José Inocêncio, o que envolve um tabu – mas possivelmente em termos de aceitação do público, que já está mais acostumado com discussões sobre gênero.
A novela não pode deixar de falar com a sociedade. Mesmo sendo um remake, ela tem que trazer temas do nosso tempo, como o patriarcado, do coronelismo. A Buba ampliará ainda mais o debate da transfobia Bruno Luperi
Para o autor, a Bahia permanece como o cenário ideal para abordar essa variedade de temas.
A Bahia forja o brasileiro que sabe lidar tão bem com o diferente, que sabe ser feliz. Tudo isso é muito bonito diz o autor.
Luperi acredita que já honrou seu avô em vida ao ter sucesso na adaptação de Pantanal. No ápice do cansaço que um autor de novelas pode sentir, ele jurou que nunca mais faria algo semelhante.
Renascer, nesse sentido, representará um passo adiante na relação de confiança que Luperi estabeleceu com Benedito: o de conduzir a obra do veterano autor ao longo do tempo.
Se depender de Luperi, seu próximo projeto será transformar nas páginas que já começou a escrever a trama de O Arroz de Palma, baseada no romance de Francisco Azevedo.
É uma história que eu quero muito contar. Ela está guardada no oratório declara.