O veneno de uma aranha brasileira tem sido investigado como fonte de inspiração para o desenvolvimento de novos tratamentos contra o câncer.
Realizado há cerca de duas décadas por cientistas do e do Instituto Butantan, em São Paulo, o estudo explora o potencial terapêutico de uma substância extraída da Vitalius wacketi, uma espécie de aranha encontrada no litoral paulista.
O candidato a remédio oncológico, porém, não é feito diretamente do veneno: as moléculas foram isoladas, purificadas e sintetizadas em laboratório, a partir de técnicas desenvolvidas e patenteadas pelos especialistas brasileiros.
Nas primeiras investigações, a molécula testada mostrou potencial no tratamento da leucemia, um tipo de câncer que afeta as células sanguíneas. Além disso, revelou algumas vantagens estratégicas em relação às terapias convencionais, como a quimioterapia.
No entanto, os estudos com essa substância ainda estão em estágios iniciais. É necessário realizar mais testes em células e animais para avaliar sua segurança e eficácia antes de iniciar os ensaios clínicos em humanos.
Os pesquisadores afirmam estar em negociações com empresas farmacêuticas para estabelecer parcerias e obter os investimentos necessários para avançar com o projeto.
- Ciência: Fase da Lua hoje: 25/05/2024
A BBC News Brasil conversou com os cientistas responsáveis pelo estudo do veneno dessa aranha. Acompanhe a seguir todos os detalhes desse projeto promissor.
Trinta Anos de Pesquisa
A trajetória começou há aproximadamente três décadas, quando pesquisadores do Instituto Butantan conduziram uma série de expedições ao longo do litoral de São Paulo.
Nós geralmente éramos chamados para regiões em que aconteciam movimentações, como o corte de árvores e desmatamento. Nessas visitas, fazíamos a coleta de aranhas Pedro Ismael da Silva Junior, biólogo do Laboratório de Toxinologia Aplicada do Butantan
Entre os participantes dessas expedições estava o aracnólogo Rogério Bertani, também do Butantan, que iniciou estudos e reclassificações taxonômicas da Vitalius wacketi e outras aranhas a partir da década de 1990.
Alguns anos mais tarde, entrou em cena o bioquímico Thomaz Rocha e Silva, atualmente vinculado ao Einstein.
Durante o término de sua formação acadêmica, nos primeiros anos do século XXI, ele decidiu investigar as potenciais atividades farmacológicas de certas substâncias presentes no veneno dessas espécies.
Ao estudar aranhas do gênero Vitalius, encontramos no veneno uma atividade neuromuscular. Fomos atrás da toxina responsável por esse efeito, que era uma poliamina grande e instável lembra ele
O pesquisador mencionou as poliaminas, moléculas encontradas em plantas, animais e micro-organismos.
Embora a pesquisa tenha sido documentada em periódicos acadêmicos, o projeto foi arquivado devido à falta de interesse comercial imediato na molécula.
Anos depois, me estabeleci numa faculdade e um aluno me disse que gostaria de estudar o potencial citotóxico desses mesmos venenos conta Rocha e Silva
Os cientistas optaram por realizar um painel de testes e análises para examinar as toxinas presentes em diversas aranhas do gênero Vitalius.
E vimos que uma toxina encontrada na Vitalius wacketi possuía uma poliamina pequena e com uma atividade bastante interessante Thomaz Rocha e Silva, bioquímico
A molécula foi isolada e purificada por Rocha e Silva. Em seguida, Silva Junior conseguiu sintetizá-la, reproduzindo-a quimicamente, sem extrair diretamente da aranha.
Após a síntese, a substância foi submetida a testes in vitro, nos quais foi colocada junto a células cancerosas, para avaliar sua ação.
![Veneno de aranha brasileira torna-se esperança de tratamento contra câncer](https://osegredo.com.br/wp-content/uploads/2024/03/vitaliusaranha.jpg.webp)
A atividade da molécula contra as células doentes foi considerada “importante” pelos especialistas.
Diferentemente dos tratamentos convencionais, o candidato a fármaco induziu a morte das células cancerosas por apoptose, um processo distintivo.
Quando ocorre a necrose, a célula sofre um colapso, o que gera uma reação inflamatória com efeitos no organismo explica Rocha e Silva
Já a apoptose, ou a morte programada das células, é um processo muito mais limpo. É como se as células implodissem de forma controlada compara ele
No processo de apoptose, o sistema imunológico é notificado sobre o colapso das células cancerosas, resultando em uma reação mais controlada, com impacto mínimo em outros órgãos e tecidos.
Embora existam terapias capazes de induzir a apoptose nas células do câncer, como os anticorpos monoclonais, sua produção é complexa e geralmente têm custo elevado.
A molécula derivada do veneno da aranha é sintética, o que facilita sua fabricação e reduz os custos associados.
Além disso, ela possui algumas características físico-químicas que facilitam a permanência no sangue e depois a excreção com facilidade pelos rins acrescenta Rocha e Silva
Inicialmente, a poliamina foi avaliada no combate à leucemia, porém, há a expectativa de investigar sua eficácia contra outros tipos de tumores.
Próximos Passos na Pesquisa
Após os resultados promissores da análise in vitro, as equipes de inovação das instituições agiram rapidamente para patentear e proteger a propriedade intelectual da descoberta.
Segundo Denise Rahal, gerente de parcerias e operações do Health Innovation Techcenter do Einstein, a patente diz respeito ao processo de purificação e síntese desenvolvido pelos pesquisadores, não à molécula em si.
Eu não posso patentear algo que já existe na natureza, como é o caso do veneno da aranha ou das toxinas presentes nele. Mas a síntese, o processo de obtenção dessa molécula, é um produto que foi desenvolvido a partir dessas pesquisas Denise Rahal, farmacêutica
Cristiano Gonçalves, gerente de Inovação do Butantan, destaca que as instituições estão em comunicação com parceiros para licenciar a tecnologia e dar continuidade às pesquisas.
Nem o Einstein nem o Butantan tem capacidade de produção da molécula, mesmo que seja para gerar o material necessário para os testes clínicos de fase 1 diz ele
Estamos em contato com parceiros para desenvolvermos juntos essa tecnologia complementa Gonçalves
Rahal ressalta que este estudo em particular apresenta outro atrativo significativo: sua base e inspiração são oriundas da rica biodiversidade brasileira.
Nosso trabalho é justamente tirar essas pesquisas do papel e trazê-las para o benefício da sociedade pontua ela
Do ponto de vista científico, os pesquisadores almejam iniciar análises destinadas a desvendar o mecanismo de ação da poliamina. Eles buscam compreender detalhadamente como ela atua, visando a eliminação das células cancerosas.
A substância também requer avaliação em cobaias, a fim de verificar sua eficácia e segurança em organismos mais complexos do que apenas um conjunto de células.
Se esses testes obtiverem sucesso, o projeto avançará para a fase clínica, que compreende três etapas distintas. Nesta fase, o objetivo é investigar como a substância se comporta em seres humanos e se pode realmente ser eficaz como tratamento contra o câncer.
Em caso de resultados positivos, a droga poderá então ser submetida à aprovação pelas agências reguladoras, como a Anvisa, para uso em clínicas e hospitais.
Indagado sobre o significado de realizar pesquisas desse tipo com a biodiversidade brasileira, Silva Junior enfatiza a longa experiência de algumas espécies.
Alguns dos aracnídeos surgiram há 300 ou 350 milhões de anos, e os trabalhos mostram que eles mudaram muito pouco desde então estima ele
“Para sobreviver a esses milhões de anos, eles certamente desenvolveram estratégias para protegê-los das ameaças de ambientes inóspitos.”
E nós podemos hoje em dia estudar como essas características e habilidades aparecem na biodiversidade brasileira, que é a maior do mundo, para encontrar essas moléculas que podem nos ajudar futuramente contra uma série de doenças finalizou