A poesia é uma forma de arte capaz de transcender a realidade, levando-nos a enxergar o mundo de uma forma diferente. É através dela que somos capazes de expressar nossos sentimentos mais profundos e contemplar a essência da vida de uma forma única. E é neste contexto que surge a poética da alma de Adélia Prado, uma das mais consagradas poetisas brasileiras da atualidade.
Um pouco sobre Adélia Prado
Nascida em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935, Adélia Prado começou a escrever poesias ainda na infância. Porém, foi somente em 1976, aos 41 anos, que ela publicou seu primeiro livro de poesias, “Bagagem”. A partir daí, sua carreira como poetisa decolou e ela passou a ser reconhecida como uma das mais importantes escritoras brasileiras dos últimos tempos.
Com um estilo único, Adélia Prado costuma retratar em seus poemas temas como amor, fé, religiosidade e cotidiano. Seus versos são marcados por uma simplicidade envolvente e uma sensibilidade apurada, que faz com que o leitor se identifique e se emocione com cada palavra escrita.
A poética da alma em Adélia Prado
Como toda boa poetisa, Adélia Prado consegue transformar em palavras sentimentos que muitas vezes não conseguimos explicar. Através de sua poesia, ela nos permite enxergar a essência da vida de forma mais profunda e contemplativa.
Seus versos retratam as coisas mais simples do cotidiano, como um pote de barro, uma tigela de vidro ou um vestido esquecido no guarda-roupa. Porém, é justamente através dessas coisas que ela nos leva a refletir sobre a essência da vida e o que realmente importa.
Um dos poemas mais conhecidos de Adélia Prado é “O Lugar da Coisa”. Nele, a poetisa fala sobre um pote de barro que está sem utilidade na casa. Porém, ao contemplar o objeto, ela consegue enxergar muitas coisas que antes não percebia, como as marcas deixadas por quem o fez e o carinho que foi colocado na sua criação.
Este poema é um exemplo de como Adélia Prado consegue transformar coisas simples em fonte de reflexão. Ao ler suas poesias, somos convidados a enxergar o mundo de outra forma, a prestar mais atenção nas pequenas coisas e a refletir sobre o que as coisas realmente significam para nós.
A religiosidade em Adélia Prado
Outra característica marcante da poética da alma de Adélia Prado é a religiosidade presente em seus poemas. A poetisa, que é católica, consegue falar sobre sua fé de forma profunda e emocionante.
Em um de seus poemas mais famosos, “Antífona”, Adélia Prado fala sobre sua relação com a figura de Nossa Senhora. Ela retrata a santa como uma mãe amorosa, capaz de acolher suas dores e suas alegrias. É um poema que toca profundamente os corações religiosos e não religiosos, pois fala sobre amor e acolhimento de forma universal.
Outro exemplo de poema religioso de Adélia Prado é “Risco”. Neste texto, a poetisa fala sobre a importância da fé em sua vida. Ela consegue transmitir com simplicidade a sensação de paz e segurança que a religiosidade pode proporcionar.
A feminilidade em Adélia Prado
Não é difícil perceber que a fortaleza da poética da alma de Adélia Prado é a feminilidade. A poetisa consegue expressar sentimentos que somente as mulheres são capazes de vivenciar, como a maternidade, as dores do parto e a luta diária para serem vistas em uma sociedade que muitas vezes desvaloriza suas conquistas.
Em um de seus poemas mais conhecidos, “Desvalia”, Adélia Prado fala sobre a importância de valorizarmos a feminilidade e as dores que as mulheres enfrentam para serem respeitadas e valorizadas. É um poema que toca profundamente o coração das mulheres, pois retrata de forma honesta e emocionante a luta diária pela igualdade.
Outro exemplo de poema sobre a feminilidade é “Deus”. Neste texto, Adélia Prado fala sobre a maternidade e a relação das mulheres com seus filhos. É um poema tocante que retrata a força e a beleza do amor materno de forma absolutamente sincera.
A poética da alma de Adélia Prado é uma das mais marcantes da literatura brasileira. Através de seus versos envolventes e sensíveis, a poetisa nos leva a contemplar a essência da vida de forma profunda e reflexiva.
Com sua simplicidade envolvente e sua sensibilidade apurada, Adélia Prado retrata em seus poemas temas como amor, fé, religiosidade e feminilidade. Seus versos tocam profundamente o coração dos leitores, levando-os a enxergar a vida de uma forma mais contemplativa e significativa.
Por isso, é impossível falar sobre a poesia brasileira contemporânea sem mencionar Adélia Prado e sua poética da alma. Seus poemas são verdadeiras obras de arte, que nos permitem transcender a realidade e contemplar a essência da vida de forma única e emocionante.
Poemas de Adélia Prado:
O Vestido
No armário do meu quarto escondo de
tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas à ponta de
longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito, meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só toca-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.
A Serenata
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
– só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei se não for santa?
Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Alfândega
O que pude oferecer sem mácula foi
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas
do barroco na música e o Rio de Janeiro
que visitei uma vez e me deixou suspensa.
‘Não serve’, disseram. E exigiram
a língua estrangeira que não aprendi,
o registro do meu diploma extraviado
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
foram seus modos de detectar vaidades.
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
enquanto nos confundíamos.
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
Deixei meu dente.
Agora só tenho três reféns sem mácula.
Momento
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
A formalística
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Fragmento
Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.
Casamento
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Dona Doida
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Um jeito
Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.
Janela
Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.
Obras de Adélia Prado
- Bagagem (1975)
- O Coração Disparado (1978)
- Soltem os Cachorros (1979)
- Cacos para um Vitral (1981)
- Terra de Santa Cruz (1981)
- Os Componentes da Banda (1984)
- O Pelicano (1987)
- A Faca no Peito (1988)
- Poesia Reunida (1991)
- O Homem da Mão Seca (1994)
- Duas Horas da Tarde no Brasil (1996)
- Oráculos de Maio (1999)
- Estreia do Monólogo Dona da Casa (2000)
- Quero Minha Mãe (2005)
- A Duração do Dia (2010)
- Miserere (2013)
Frases de Adélia Prado
“Não tenho tempo algum, ser feliz me consome.”
“Amor pra mim é ser capaz de permitir que aquele que eu amo exista como tal, como ele mesmo. Isso é o mais pleno amor. Dar a liberdade dele existir ao meu lado do jeito que ele é.”
“Dor não tem nada a ver com amargura. Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais, é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável. Cada dia mais rica de humanidade.”
“Deus é mais belo que eu. E não é jovem. Isto sim, é consolo.”