Tem dias em que a vida é um ato de coragem!
Essa frase é de um trecho de uma música do Vanguart. Eu estava no carro, curtindo um som, quando essa frase chegou até mim como um estrondo. O tipo de coisa que a gente ouve do nada e passa o dia pensando a respeito.
Se tem uma coisa que é comum de se escutar ao longo do nosso caminho, educação e tudo que envolva nossa existência é de como a vida é difícil, complicada, dura, e outros adjetivos que vão nessa linha. Vai sendo construído um discurso, pensamento e prática onde a vida boa, que nos salvará das dificuldades, complicações e durezas, está sempre nas coisas de fora, na direção de fora. Vamos absorvendo a ideia de que só me sentirei inteiro, sereno, tranquilo, realizado, quando conquistar cada elemento externo que me ensinaram a ver como fundamental/essencial.
Essa busca constante e frenética promete que, ao fim e ao encontro de cada um desses elementos externos, teremos, enfim, a redenção de uma vida satisfatória; uma ideia ilusória de que, uma vez conquistado e adquirido aquilo que estava fora de nós, ficaremos e viveremos, finalmente, em um estado de segurança e satisfação permanente.
Nessa crença damos o ponta pé inicial a esse ciclo interminável, uma jornada atrás de uma vida plena, permanente, quase imutável, mas que nunca parece chegar, pois sempre há algo faltando para ser acoplado, um novo bem a ser possuído, uma nova ideia fixa de que se eu tivesse tal coisa, status, relacionamento, família e afins, então seria feliz.
Vamos nos tornando legos-ambulantes, em que sempre dá para encaixar uma peça a mais nessa montagem sem fim de uma imagem ou figura, que mal reconhecemos o que realmente é, pois continuamos carregando o eterno DEVERIA SER.
Ou seja, vamos sendo estimulados a reproduzir essa doutrina de empregar valor a tudo o que está fora de nós como responsáveis por nossa felicidade, bem-estar, satisfação, completude e por aí vai. Vamos olhando para os elementos externos afirmando que eles são detentores de nossa essência e preenchimento, e ai da vida, das coisas e das pessoas que não cumprirem com esse papel e responsabilidade de mimar e alimentar meus caprichos. Uma lógica que nos coloca num enorme globo da morte da sensação de vazio, carência e mutilação da alma.
Desejamos o que não temos, conquistamos o que desejávamos, e deixamos de desejar o que tanto queríamos para voltar a desejar o que não temos.
Veja, o problema não é o desejo em si, mas o poder que damos e colocamos nas coisas desejadas; o tipo de papel que queremos que tais desejos atuem e correspondam; o tipo de confusão que fazemos sobre nossa noção de EU e de como a vida, as coisas e os outros deveriam nos alimentar e nos nutrir.
O grande enrosco surge quando essa busca para fora, baseado em utilidades, começa a virar nosso jeito de lidar com o mundo, com os outros e consigo mesmo. E é aí mermão que a coisa pega, pois tudo o que vejo e toco, tudo com o que me relaciono, perde o valor em si mesmo, afinal, deixo de olhar a realidade das coisas/vida/pessoas como são e estão, e vou construindo minha vida partindo do pressuposto que preciso moldar e encaixar tudo da forma como quero e como quero. No fundo, apenas fazemos a manutenção de medos e inseguranças que custamos a admitir.
Há tantas coisas que aprendemos ao longo da vida, tantas defesas e ataques que adquirimos para nos proteger, tantos valores introjetados sem questionar muito, tantas formas rígidas de pensar e sentir que nem fazem mais sentido ultimamente, que a frase: TEM DIAS QUE A VIDA É UM ATO DE CORAGEM ganha uma outra roupagem, quase como uma afirmação propondo movimento para uma revolução interna.
E o ato de coragem é, justamente, a possibilidade que temos de nos devolver, de questionar nossas buscas e reconhecer o que não faz sentido. De abrir mão do que não precisa mais permanecer conosco. De admitir o que precisa ser mudado e o que precisa ser mantido.
De parar com a terceirização da responsabilidade de nossa vida e nossa forma de existir. De nadar contra a maré das coisas que nos são impostas, questionando se, de fato, a realização e a completude são possíveis apenas em elementos externos. De parar de tornar a vida, as coisas e as pessoas reféns do nosso vazio, inseguranças e medos.
E assim começamos uma trajetória onde podemos inventar um caminho próprio. E quando digo isso não falo como se tivéssemos que nos isolar do mundo e dos outros, muito pelo contrário. Criar o próprio caminho nos possibilita agregar os outros por quem são e não por quem deveriam ser, e assim também me agrego aos outros por quem sou e não por quem eu deveria ser. É um caminho de troca autêntica, sem infligir o peso de tornar o outro meu boneco ou ser o boneco do outro. Sou quem sou e o outro é quem é. Se há encontro é maravilhoso, e se não há, ninguém tem a obrigação de se mutilar no jogo de encaixe das expectativas e idealizações. A troca se torna livre e fluída e nossa busca deixa de ser recheada de ansiedades e frustrações, pois começamos a trocar a palavra “buscas” por “encontros”, e a prática deixa de ser “mutilar” a vida, as coisas e os outros, por “afirmar” a vida, as coisas e os outros.
Nessa hora, a existência que eu achava que estava fora percebo pulsando dentro, a ponto de reconhecer que eu posso não ter tudo o que desejo e isso não me deixa, nem me torna incompleto; que eu posso não ser o que os outros esperam, e que eles não precisam ser o que eu espero e não ficarmos frustrados com isso, pois nos liberamos da sensação de que deveria existir um protocolo nas relações que obrigue e exija o cafuné em nossos caprichos.
Como diria Fritz Perls: Exigências de perfeição limitam nossa capacidade de funcionar dentro de nós mesmos.
Entre mutilações e afirmações, quem tem nos acompanhado mais?