A Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o Instituto Butantan e o Hemocentro de Ribeirão Preto, implementou um protocolo inovador no combate ao câncer na rede pública de saúde.
Essa técnica de combate ao câncer, utilizada em poucos países, está sendo considerada revolucionária.
Até o momento, 14 pacientes receberam o tratamento CAR-T Cell, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Todos os pacientes apresentaram uma remissão de pelo menos 60% dos tumores. O tratamento foi realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Um desses pacientes é Paulo Peregrino, de 61 anos, que lutava contra o câncer há 13 anos e estava prestes a iniciar cuidados paliativos. Em abril, ele foi submetido ao tratamento e, em apenas um mês, obteve uma remissão completa de seu linfoma.
No segundo semestre, após autorização da Anvisa para o estudo clínico, 75 pacientes receberão o tratamento CAR-T Cell com recursos públicos. Atualmente, esse tratamento contra o câncer só está disponível na rede privada brasileira, com um custo mínimo de R$ 2 milhões por pessoa.
O método tem como alvo três tipos de câncer: leucemia linfoblástica B, linfoma não Hodgkin de células B e mieloma múltiplo, que afeta a medula óssea. No entanto, o tratamento contra mieloma múltiplo ainda não está disponível no país.
“Devido ao alto custo, este tratamento não é acessível em grande parte dos países do mundo. O Brasil, por outro lado, encontra-se em uma posição privilegiada e tem a rara oportunidade de introduzir este tratamento no SUS em curto período de tempo”, afirma Dimas Covas, coordenador do Centro de Terapia Celular CEPID-USP e do Núcleo de Terapia Celular do Hemocentro de Ribeirão Preto, responsável pelo desenvolvimento dessa tecnologia brasileira.
Remissão completa em curto período
A remissão completa em um curto período de tempo é evidente no caso de Paulo, o paciente mais recente a participar do grupo de estudos com os 14 pacientes do Centro de Terapia Celular. Ele recebeu alta no domingo (28) após receber cuidados médicos no Hospital das Clínicas da cidade de São Paulo.
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Vanderson Rocha, professor de hematologia, hemoterapia e terapia celular da Faculdade de Medicina da USP e coordenador nacional de terapia celular da rede D’Or, está liderando o caso de Paulo.
“Foi uma resposta muito rápida e com tanto tumor. Fico até emocionado [ao ver as duas ressonâncias de Paulo]. Fiquei muito surpreso de ver a resposta, porque a gente tem que esperar pelo menos um mês depois da infusão da célula. Quando a gente viu, todo mundo vibrou. Coloquei no grupo de professores titulares da USP e todo mundo impressionado de ver a resposta que ele teve”.
Dos outros 13 pacientes tratados, 69% também alcançaram remissão completa em 30 dias. O primeiro paciente tratado com essa técnica na rede pública brasileira apresentou resultados semelhantes aos de Paulo, mas infelizmente faleceu devido a um acidente doméstico.

Antes e depois do tratamento em combate ao câncer
As duas imagens do Pet Scan (tomografia feita com um contraste especial) ilustram a transformação de Paulo: à esquerda, vemos um paciente cujo único caminho parecia ser cuidados paliativos, onde o objetivo é proporcionar conforto, mas sem expectativa de cura; à direita, temos um paciente cujo organismo está livre de tumores após o tratamento com CAR-T Cell.

Atualmente, o Centro de Terapia Celular realiza o procedimento de forma compassiva, aceitando pacientes em estágios avançados do câncer, e os médicos obtêm autorização da Anvisa para aplicar o método.
Quando o médico entrou em contato com Paulo, o publicitário já havia passado por cirurgias, inúmeros exames e quimioterapia.
“A vitória não é só minha. É da fé, da ciência e da energia positiva das pessoas. Cada uma delas ajudou a colocar um paralelepípedo nesse caminho. A imagem prova com muita clareza para qualquer pessoa a gravidade do meu linfoma, e eu não tinha ideia de que era assim”, compartilhou o paciente.

13 anos “tocando em frente”
Uma linha do tempo está sendo elaborada para acompanhar as idas e vindas dos tumores de Paulo. Sua jornada será narrada em uma autobiografia intitulada “A Vida pelo Copo D’água”, que está em processo de produção. Nesse livro, Paulo menciona sua prescrição de vida: “fé e ciência para viver a metade cheia da vida”.
Atualmente, o publicitário reside em Niterói, no Rio de Janeiro, com sua esposa e filho de 29 anos. Embora sua família seja de Recife, eles se mudaram para o Sudeste na década de 70. Paulo é o caçula de 10 irmãos e foi o primeiro a enfrentar o câncer.
Em 2018, quando começou a tratar seu primeiro linfoma, seus dias eram divididos entre trabalho, sessões de quimioterapia e partidas de vôlei de praia. Ele até participou de um campeonato nas areias cariocas.
“O médico me disse que eu era o primeiro paciente que fazia um esporte de alto rendimento fazendo quimioterapia. Falei: ‘O esporte é de alto rendimento, mas meu vôlei, não’”, brincou Paulo.

Livro no leito e cegueira temporária
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No ano de 2020, devido à pandemia de Covid-19, Paulo foi isolado em um quarto de hospital após passar por um transplante de medula óssea. Embora estivesse sozinho, ele não se sentiu abandonado. Pediu à enfermeira os contatos dos pacientes dos quartos vizinhos e criou um grupo no WhatsApp chamado “TMO Juntos” (uma brincadeira com as iniciais de “transplante de medula óssea” e a expressão “tamo junto”).
Esse grupo era formado por Paulo, um idoso acompanhado por sua esposa e uma adolescente de 17 anos. Eles compartilharam histórias, se motivaram mutuamente e trocaram músicas durante o período de isolamento.
Dentro de 30 dias, Paulo realizou o pré-lançamento de seu livro, intitulado “Brizola e eu”. Os exemplares foram higienizados com álcool pela enfermeira, enquanto sua esposa os entregava. Paulo assinava os livros, que eram então enviados para amigos e familiares.
O livro narra a biografia de Jecy Sarmento, um dos principais assessores e amigos do ex-governador Leonel Brizola.
O encerramento desse ciclo durante a internação foi marcado por uma surpresa das enfermeiras, que trouxeram um bolo comemorativo.
Em 2022, Paulo contraiu a Covid-19 durante uma internação devido a uma queda nas plaquetas sanguíneas, o que aumenta o risco de sangramentos intensos. Uma tosse forte causou uma hemorragia interna nos dois olhos, resultando em uma cegueira temporária de três meses.
“Foi a pior sensação da minha vida. Fui em três médicos e só o terceiro disse: ‘Vamos operar e retirar essa hemorragia do seu olho.”

Mudança de tratamento
Após realizar pesquisas na internet, a família de Paulo descobriu o tratamento contra o câncer com CAR-T Cell e o médico Vanderson Rocha.
“Comecei a acompanhá-lo quando já tinha feito uma grande parte do tratamento. A doença voltou, então, a última opção dele realmente era o CAR-T Cell. Tive que pedir autorização da Anvisa pra gente poder fazer esse tipo de tratamento. Muitos pacientes não têm essa oportunidade”, explicou o especialista.
Paulo lembra que teve febre no primeiro dia em que as células modificadas foram aplicadas em seu corpo, chegando a ser monitorado na UTI.

“Senti um pouco de dormência nas mãos, mas tive acompanhamento antes, durante e depois por toda a equipe multidisciplinar do HC, em São Paulo.”
Apesar da remissão do câncer em apenas um mês, entre março e abril deste ano, Paulo decidiu adiar a “festa da cura” para novembro. Por enquanto, ele permanecerá na capital paulista para acompanhamento médico.
“A gente só tem duas formas de agradecer à vida: ser resiliente, isso que me impulsionou a chegar até aqui, e fazer o bem para as pessoas”, declara ele.

CAR-T Cell no SUS
A produção dessas células é complexa e envolve altos custos, aproximadamente R$ 2 milhões por paciente, sem incluir despesas de internação, de acordo com Dimas Covas.
O grupo de pesquisa do Centro de Terapia Celular de Ribeirão Preto desenvolveu a versão nacional dessa tecnologia e obteve o primeiro sucesso no tratamento contra o cãncer em 2019. O Brasil é o único país da América Latina a utilizar essa técnica.
Em 2021, em parceria com o Instituto Butantan, foram estabelecidas duas fábricas no estado de São Paulo: uma na Cidade Universitária, em São Paulo, e outra no campus universitário de Ribeirão Preto, com capacidade inicial de produção de 300 tratamentos por ano.
“Para disponibilizar para a população brasileira, é necessário obter financiamento para realizar o tratamento para 75 pacientes com linfoma e leucemia e gerar os dados clínicos que permitam o registro do produto na Anvisa”, acrescentou.
A previsão é que o estudo seja iniciado em agosto deste ano.
“Já tem uma fila de pacientes, porque os médicos que já sabem que nós estamos nesse processo mandam constantemente nomes de pessoas, e esses nomes estão sendo colocados numa fila por requisitos.”, concluiu.
O que diz a Anvisa
De acordo com informações fornecidas à reportagem do g1, a Anvisa afirmou estar priorizando a análise do estudo.
“A Anvisa recebeu proposta de ensaio clínico conduzida pelo CEPID-FAPESP-USP e este pedido está em análise pela Anvisa. O pedido faz parte de um projeto-piloto em que a Anvisa, selecionou o Centro de Terapia Celular (CEPID-FAPESP-USP) de Ribeirão Preto para colaboração no desenvolvimento de produtos de terapia avançada no Brasil. Assim, a Agência tem feito interlocução com a equipe de desenvolvimento do CEPID-FAPESP-USP para aprimorar o desenho do estudo. O CEPID-FAPESP-USP também estabeleceu um cronograma com a Anvisa para enviar informações sobre a possível fabricação do produto e os controles aplicáveis nos próximos meses. A Anvisa, por sua vez, tem dado prioridade a estas análises, proporcionando retorno rápido ao desenvolvedor, com o objetivo de priorizar a execução desse estudo no Brasil.”
Como funciona a técnica
O processo de terapia tem início com a coleta dos linfócitos T, que são células de defesa do paciente. Essas células são levadas para o laboratório, onde passam por modificações genéticas.
No laboratório, as células são geneticamente alteradas para que se tornem capazes de reconhecer e atacar as células cancerígenas. Essas células modificadas são então multiplicadas em grandes quantidades.
Em seguida, as células modificadas são reintroduzidas no paciente, onde circulam pelo organismo. Elas conseguem encontrar e destruir o tumor, sem prejudicar as células saudáveis.
O próprio sistema imunológico do paciente é “treinado” para combater o câncer, utilizando suas próprias células modificadas como uma arma poderosa contra ao câncer.
*Nota: As informações e sugestões contidas neste artigo têm caráter meramente informativo. Elas não substituem o aconselhamento e acompanhamentos de médicos, nutricionistas, psicólogos, profissionais de educação física e outros especialistas.