“Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.” – Stan Lee, Tio Ben, na obra o Homem Aranha.
Pois é, mesmo os filmes e histórias em quadrinhos têm algo a nos ensinar. Ocorre que, havendo ou não utilizado alguma fonte de inspiração, podemos citar o positivista Auguste Comte como um dos precursores dessa assertiva, na obra Sistema de Política Positiva.
Comte, como positivista que era, ao citar essa frase se refere à responsabilidade dos ricos e poderosos. Para ele, essas pessoas não devem usufruir apenas para si os benefícios aferidos, já que eles pertencem a toda a sociedade.
Dessa forma, podemos dizer que os ricos e poderosos possuem, segundo Comte, um dever para com a sociedade de distribuição do que veio, efetivamente, da própria sociedade.
Por outro lado, o debate acerca do pensamento em questão está longe de se esgotar apenas na esfera material. Ingressando agora no meio religioso, na verdade o seu difusor primevo foi Lucas, que no capítulo 12, versículo 48 de seu evangelho já nos lecionava: “… A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido”.
Ora, mas o que é que nos é dado? O que é que nos é confiado? Para entendermos melhor tudo isso, é necessário, senão a leitura integral do capítulo 12, ao menos dos versículos 47 e 48 do evangelho de Lucas, que seguem.
“Aquele servo que conhece a vontade de seu senhor e não prepara o que ele deseja, nem o realiza, receberá muitos açoites. Mas aquele que não a conhece e pratica coisas merecedoras de castigo, receberá poucos açoites. A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido.”.
Apesar de utilizar a Bíblia como fonte de conhecimento, vou alterar os significados convencionais de algumas expressões. Onde se lê “servo”, aqui entenderemos como nosso eu ordinário, aquele limitado por nossas experiências, conhecimentos adquiridos, etc. Já onde se lê “senhor”, interpretaremos como nosso eu superior, uma espécie de inconsciente consciente de uma realidade muito mais ampla do que a que percebemos.
Destarte, continuando o raciocínio, o que muito é dado, o grande poder, valendo-se da leitura integral do versículo 47 e do 48, trata-se, na verdade, da vontade e do desejo de nosso eu superior.
Quando possuímos, no eu ordinário, consciência das virtudes e da prática do bem, no entanto assim não procedemos, seremos penalizados pelo nosso eu superior, principalmente por meio do inconsciente.
Essas penalizações, ou esses “açoites”, virão pelos famosos “pesos na consciência” e, ainda, por produção direta de enfermidades no corpo físico, as chamadas doenças psicossomáticas.
Notemos, no entanto, que a frase popular “a ignorância é uma benção”, de fato guarda relação com o dito em comento, já que daquele que não conhece a vontade ou os desejos do eu superior e pratica alguma iniquidade, pouco será cobrado (pouco é diferente de nada).
Existe certa complexidade na compreensão total da ideia que tento aqui transmitir, uma vez que de alguma forma algumas pessoas não conhecem o desejo de seu eu superior.
Na tentativa de auxiliar na compreensão, imaginemos um imenso oceano e que ele, na verdade, é a mais pura energia do amor. Desse oceano advêm todas as virtudes e todas as pessoas. É nesse oceano que tudo se conecta, tudo é uno, singular, pois que é um oceano.
Contudo, ao aproximar, notamos que esse oceano uno é formado por diversas pluralidades, que seriam, dentre outras coisas, nossos “eu superiores”. Esse eu, originariamente do oceano do amor, está adormecido e se manifesta, por partes, no plano material.
Em vista disso, não são todas as manifestações materiais que têm acesso ao oceano do amor, ou a seu eu superior. Esse eu adormecido vai despertando cada vez mais através da busca por algo maior do que a mera materialidade.
Dessa forma, já existe um eu superior virtuoso, que está adormecido e que não pode ser acessado de outra forma que não a da prática do amor, que deve, antes de ser praticado, primeiro ser intencionalmente desejado.
É como dizem: quem planta pensamento, colhe palavra; quem planta palavra, colhe ato; quem planta ato, colhe hábito; quem planta hábito, colhe caráter.
Feitas essas considerações (que realmente são apenas considerações, já que o assunto merece vasta abordagem), temos que aquele que começou a despertar seu eu superior e, portanto, possui consciência do tipo de atitude que deve tomar, mas toma atitude diversa, será penalizado (como já dito, por doenças psicossomáticas e “prisões na consciência”, o que abordarei em outra oportunidade).
Por outro lado, daquele que não tem seu eu superior desperto e não possui consciência de que pratica a iniquidade, será cobrado menos do que do consciente. De quem muito souber acerca do amor, muito será cobrado e, a quem muito foi confiado, muito mais será pedido.
Portanto, sem maiores delongas, temos duas opções: nos manter na ignorância eterna, limitados a essa materialidade cíclica e corrompida da carne e dos prazeres mundanos (se é que isso é uma opção); ou buscar o conhecimento, ampliar nosso norte e almejar um significado maior para uma existência aparentemente efêmera quando comparada com a imensidão de todo o universo, o que, como vimos, trará consigo também certas responsabilidades, da mesma forma como responsabilizamos com maior dureza o adulto do que crianças, pelos mesmos erros.
Essa frase possui um conteúdo muito denso, o que demandaria um maior estudo e um texto igualmente maior e mais explicativo. O “confiado”, em seu final, refere-se ao dever.
Podemos, genericamente, colocar esse dever como uma reta-ação, ou mesmo um dharma. Ambos assuntos são muito densos, por isso devem ser tratados em outro texto, específico sobre cada um desses pontos.
Forte abraço e uma boa semana!
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