Em um mundo tão dominado por narrativas fabricadas, está cada vez mais difícil distinguir o que é real do que é ilusão.
Qual é o peso da verdade quando vivemos rodeados por fabricações de realidades?
Em seu livro “A caverna”, publicado no fim do ano 2000, o célebre autor português José Saramago abordou uma questão que, anos depois, continua tão pertinente e atual: não é que estejamos cegos para o mundo, mas aquilo que reconhecemos como realidade nada mais é do que sombras.
Em entrevista à Folha, próximo da data de lançamento do livro, o autor observou que parecemos viver em uma cultura de frivolidade. Se isso já era verdade lá atrás, em uma era tão mais analógica e presente, que dirá agora com o advento das redes sociais.
A maioria de nós se vê presa na armadilha que é fazer a curadoria dos melhores momentos da nossa vida e nos ver à mercê dos melhores momentos de quem nos rodeia. Temos as câmeras nas mãos, mas em algum momento foi decidido que não mostraremos nossos bastidores, apenas o palco principal. E mesmo que saibamos que escondemos muito sobre nós nas redes, depois de tanto tempo expostos às belas imagens dos outros, começamos a achar que a vida alheia é sempre mais promissora que a nossa. Já diria outro escritor português, agora Fernando Pessoa: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada, todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”.
Em seu livro, Saramago fala sobre as pessoas que estão dentro da caverna, no caso todos nós. O autor não conseguiu observar nem ao menos um grupo de abençoados que estivesse imune a dar mais valor às imagens projetadas na parede do que à realidade em si. O escritor observou que ficamos presos às sombras, representações que podem ou não ser reais, ao invés de sairmos da caverna e encararmos o real.
Antigamente, na época em que lançou o livro, Saramago disse que a nova caverna seriam os shoppings centers, os antros do consumo. O tempo passou e agora acredito que é seguro dizer, que a maioria de nós tem uma caverna particular que leva para todos os lugares, que pode nos entregar representações — reais ou não — de qualquer coisa, com a distância de um clique.
A internet e tudo que surgiu graças a ela tem, ao mesmo tempo, um caráter agregador e de divisão. Podemos nos juntar com pessoas que pensam como nós, o que nos ajuda a encontrar uma tribo, ao mesmo tempo que perpetua a polarização que já vivemos, na qual não é possível um debate saudável entre dois lados, pois nunca tiveram que lidar um com o outro e ambos estão alimentados da certeza de que o seu ponto de vista é o único correto.
Alguns estudiosos dizem que vivemos a era da “pós-verdade”, um momento em que pouco importa o fato se ele não condiz com uma narrativa fabricada já pré-estabelecida. O avanço das fake news mesmo com os trabalhos de checagem incansáveis de jornalistas por todo mundo é uma boa forma de exemplificar isso: a verdade é deixada de lado por uma fabricação do real.
Se, no início dos anos 2000, quando a internet dava seus primeiros passos, Saramago já observava que vivíamos glorificando visões de realidade ao invés de buscar a autenticidade, o que dirá agora que vivemos constantemente nos colocando diante do escrutínio alheio e desejando esculpir a imagem da nossa jornada a perfeição, para que causem nos outros o impacto que essas histórias perfeitas causam em nós. Vamos em busca da pegada digital perfeita, capaz de causar inveja a todos. E no meio do caminho, tornar nossa própria existência irreconhecível para nós.
Perdemos um pouco da noção de quem somos e do que é realidade. Já existe uma solução para isso? É possível sair da caverna? É difícil dizer.
Mas definitivamente reconhecer as imagens na parede como irreais já é um ótimo primeiro passo.