O caminho da fé tem ganhado contornos diferentes dentro de algumas igrejas evangélicas brasileiras. Na unidade da Igreja Lagoinha localizada em Alphaville, na cidade de Barueri (SP), um grupo seleto de fiéis tem acesso a um trajeto alternativo, área VIP.
Esse itinerário inclui entrada por um estacionamento reservado, áreas de espera com estrutura de camarim, serviço de bufê, corredores específicos e um espaço delimitado a poucos metros do palco onde o culto é conduzido.
Em Belo Horizonte, por sua vez, a Boas Novas Church também oferece um setor premium em celebrações importantes, como a virada do ano, com banheiros exclusivos ao lado do altar, petiscos variados e um jantar especial.
A adoção de áreas diferenciadas dentro dos templos tem se tornado cada vez mais comum diante de um público que vem se tornando mais elitizado. No entanto, essa tendência tem gerado desconforto entre parte dos frequentadores e atraído críticas públicas, inclusive de outros líderes religiosos.
Setores vips dividem espaço e opiniões nos cultos evangélicos
Na noite de 20 de março, às 20h, o auditório menor da Igreja Lagoinha estava quase completamente lotado, com cerca de 4.500 lugares ocupados. No entanto, um setor à direita do palco seguia parcialmente vazio. Trata-se de uma área separada do público geral, destinada a convidados especiais.
Costuma ser o local onde figuras públicas, como influenciadores e celebridades, assistem aos cultos. Na ocasião, a ausência de nomes famosos foi notada, mas, ainda assim, o acesso ao local continuou restrito, com membros da igreja fiscalizando a entrada dos que tinham passe autorizado.
Além disso, é nesse setor reservado que alguns nomes de destaque dentro da própria Lagoinha, como o pastor André Fernandes e sua esposa, a pastora Quezia Fernandes, costumam acompanhar a celebração.
Privilégio ou acolhimento? debate segue entre fiéis e líderes
A discussão sobre a presença de áreas exclusivas dentro de igrejas evangélicas expõe um dilema entre inclusão e privilégio.
Enquanto parte dos líderes defende a medida como uma forma de acolher fiéis com demandas específicas por segurança ou discrição, outros veem no modelo uma distorção dos princípios de igualdade e simplicidade que norteiam o evangelho.
A crescente presença de influenciadores e celebridades nos templos evangélicos e a adaptação dos espaços para receber esse público podem indicar uma transformação nos modos de vivenciar a fé.
Mas também abrem espaço para questionamentos sobre os limites entre respeito à individualidade e o risco de institucionalizar o elitismo dentro da espiritualidade.
Vídeos de influenciadora revelam bastidores exclusivos em igreja evangélica
A presença de áreas vip na Igreja Lagoinha ganhou notoriedade após publicações da influenciadora digital Maíra Cardi, que frequenta a congregação.
Nos vídeos, ela compartilha registros dos bastidores, exibindo um acesso específico que inclui entrada por um estacionamento reservado descrito por ela como mais discreto além de uma passagem direta para o camarim da igreja. O espaço também é utilizado por artistas e membros da liderança espiritual que participam das cerimônias.
Esse camarim oferece um serviço de bufê, garçons à disposição e uma entrada particular posicionada atrás do grande telão do templo. Essa rota permite o acesso direto ao setor vip, localizado na área mais próxima do altar.
A influenciadora se referiu ao local como sendo destinado a pessoas “very important person”, termo em inglês que originou a sigla VIP, ou “pessoa muito importante”.
Pastor justifica criação de área exclusiva diante de críticas nas redes
A ampla repercussão dos vídeos e relatos nas redes sociais provocou questionamentos direcionados ao pastor André Valadão, principal líder da Igreja Lagoinha.
Um seguidor usou seu perfil para perguntar sobre a coerência entre o discurso de igualdade na igreja e a existência de um setor reservado para convidados especiais.
Em sua resposta, o pastor tentou explicar os motivos que sustentam a existência desse espaço diferenciado:
Na igreja ninguém é mais importante que ninguém, porém são inúmeras pessoas que, infelizmente, por razões pessoais e até mesmo públicas, não têm o privilégio de poder sentar onde querem nem mesmo viver uma vida comum mais publicou
“Essas desejam ir aos cultos e existe uma busca em como atender essas pessoas também.”
O que compõe as áreas exclusivas nas igrejas
- Igreja Lagoinha de Alphaville (SP): conta com estacionamento reservado, área de descanso equipada com camarim e bufê, corredores isolados e um setor fechado a cerca de cinco metros do palco, separado do público geral por uma fita.
- Boas Novas Church (BH): durante o culto de Ano-Novo, ofereceu um “setor premium” com banheiros ao lado do palco, frios, petiscos, refrigerantes, energéticos, música ao vivo e jantar especial. Os ingressos foram anunciados por R$ 750.
A divulgação dessas condições levou a mais questionamentos. Em um novo pronunciamento, o pastor Pedro Daniel, da Boas Novas Church, tentou se distanciar do termo “vip”.
Ele declarou que a Lagoinha, por exemplo, não distingue entre ricos e pobres, mas mantém assentos reservados para convidados de pastores e líderes — prática comum em grandes eventos.
Posteriormente, a igreja implementou uma “área vip para voluntários”, que inclui serviços como massagem, maquiagem, botas de compressão para descanso das pernas e bufê — destinada a quem trabalha nas celebrações.
Apesar das mudanças, as medidas não foram suficientes para acalmar todos os fiéis. A advogada Marília Teodoro, de 33 anos, que participou do culto no dia 20, expressou desconforto com a divisão:
As pessoas vêm aqui buscar um fortalecimento na fé, não para olhar para os outros. Acho desnecessária, é uma segregação que pode causar constrangimento criticou
Já a dentista Janaina Sousa, de 39 anos, mostrou compreensão quanto ao espaço reservado:
Nem sei por onde eles entram, é um lugar super-reservado. Mas não acho que seja um problema. Acho que não é nem pela vaidade dos artistas, mas para eles terem aquele momento que foram buscar na igreja. Querendo ou não, nem todos respeitam isso, pode ter algum assédio opinou
Críticas crescem após anúncio de ingressos vip em belo horizonte
Em Belo Horizonte, a Boas Novas Church enfrentou uma onda de críticas nas redes sociais após o pastor Pedro Daniel divulgar a venda de ingressos para o “setor premium” do culto de virada de ano.
O valor de R$ 750 dava acesso a assentos junto ao palco e a diversos serviços exclusivos.
Se você é premium, vai sentar nas primeiras cadeiras, no pé do palco. Cinco mil pessoas vão usar o mesmo banheiro lá fora, mas você que é premium vai ter banheiros do lado do palco reservados para você e sua família. Vai ter tira-gosto, frios, refrigerante, energético, música ao vivo. Além de uma experiência no evento, vamos para um jantar incrível, de altíssimo nível explicou o pastor em vídeo
Após as críticas, Pedro Daniel voltou às redes para justificar a proposta. Afirmou que a iniciativa foi pensada para financiar o restante do evento e que errou na escolha das palavras:
Na nossa igreja separamos cultos cotidianos de um megaevento como esse do Ano-Novo. Decidimos liberar 80% das inscrições gratuitas e apenas 20% seriam cobradas, e daí surgiu a ideia de uma área vip. Na nossa lógica, uma minoria pagaria pela maioria e todos ficariam felizes. Infelizmente, no olhar de alguns, nossa intenção foi outra. Lamentável a repercussão negativa, mas concordo que a linguagem usada não foi a mais correta declarou
Especialista e líderes religiosos apontam mudanças no perfil das igrejas
Segundo o cientista político Vinicius do Valle, cofundador do Observatório Evangélico, a criação de áreas exclusivas está relacionada à transformação do perfil dos fiéis, principalmente em igrejas neopentecostais.
Essas igrejas estão se especializando em um setor de renda mais alta, que procura uma experiência com características de exclusividade e construção sofisticada na relação com a fé. Normalmente têm também músicas mais modernas, usam palavras em inglês, como church analisa
Lideranças se posicionam contra privilégios em templos religiosos
As críticas aos espaços reservados vieram também de dentro do próprio meio evangélico. O pastor Eduardo Reis, da Reino Church, em Balneário Camboriú (SC), igreja conhecida por atrair um público de alta renda, repudiou essa prática:
Em muitas igrejas, a lógica do privilégio é explícita: poltronas acolchoadas para os líderes, estacionamentos reservados, filas preferenciais para quem pode contribuir mais. Na Reino não existe uma “clientela” a ser agradada. Não há espaço para privilégios, e isso começa pelo próprio pastor: não tenho sequer uma cadeira reservada afirmou
A Igreja Bola de Neve, que recebe nomes famosos como Sasha Meneghel, Alexandre Frota e Danielle Winits, também declarou que nunca instituiu regras específicas para tratar fiéis com maior visibilidade social.
Já na Assembleia de Deus Vitória em Cristo, liderada por Silas Malafaia, há uma antessala para recepção de autoridades, como deputados e governadores. Contudo, Malafaia se opõe ao conceito de área vip:
Não tenho Área vip na minha igreja. Você ter uma sala pastoral antes do culto para receber um convidado e dar um café é protocolo. Mas dentro não tem área para bacana, que não quer se misturar com os outros. Aqui o pobre senta do lado da classe média e do rico, isso é o Evangelho. Quem faz área vip está precisando ler mais a Bíblia concluiu