O Brasil da doença aguda
Utilizando-me de uma linguagem comum na medicina, peço licença para convidá-lo a pensarmos juntos na doença aguda e na doença crônica.
A primeira é intensa e de curta duração, a segunda, contida e constante e menos sintomática.
Doença aguda é feito paixão, já doença crônica é feito um amor para toda a vida.
O brasileiro, chamado de povo apaixonado, sofre do inconformismo agudo. A indignação do povo por aqui é intensa, barulhenta, febril; porém dura no máximo quinze dias. O atestado vence e então, retoma-se a vida normal com quase nada de sequela, como se nada tivesse acontecido.
Em menos de sessenta dias (prazo pós-cirúrgico, também cabalístico) tudo passa, tudo se engaveta. Brasileiro incuba vírus como ninguém.
Penso que a terra deitada eternamente no imaginário berço esplêndido, que nunca enfrentou guerra que se preze e, nem tampouco, acidente geográfico de relevante significância e abrangente destruição tenha feito de nós o povo da doença aguda, dessas que o tempo cura sem que nada se precise fazer.
Confiamos demais no nosso sistema imunológico, acreditamos que tudo se resolve por intervenção invisível, e se querem saber, isso não é à toa. Estamos resistindo bravamente ao formol, ao ácido, à salmonela, ao botulismo, ao mosquito, ao agrotóxico, à lama devastadora, ao jornal, ao papelão e até ao milho.
Brasileiro é, definitivamente, um povo agudo, barulhento; que late enquanto a caravana passa e que têm criado um exército de “criadores de jeitinhos”, cujos mecanismos de defesa aceitam e arrumam desculpa para tudo.
Nem sei dizer o que seria se fossem encontrados em países de pessoas com “memória crônica” metade dos componentes já achados nos alimentos produzidos aqui nesta terra onde canta o sabiá. O sabiá canta, mas canta inclusive na hora em que não deveria. Nem todo dia é dia de festa gente! Em outras terras não haveria piada alguma em rede social ao se saber que misturam substância qualquer na carne, ou no leite ou na cerveja.
E além de agudos, somos também bastante eficazes em desfocar a atenção. Somos mestres em “fazer a criança parar de chorar”. E enquanto discutimos se é certo ou não alimentar-se de carne, o crime da famosa empresa dissolve-se no ar feito fumaça. Daqui a um tempo a revolta aguda estará engavetada junto da lama que matou o rio e da febre amarela.
Somos o povo do mecanismo de defesa. Criamos o que for preciso para que a indignação – sempre seletiva e sinestésica – não dure mais do que quinze dias, quando então o atestado vencer.
Em pouco tempo voltamos ao trabalho, ao milho enlatado nos fins de semana, à música de péssimo gosto e ao nosso mundinho dentro da redoma.
Somos tal qual o dono do frigorífico, pouco nos importa o que não nos afeta. Pouco nos incomodamos com os aproveitadores, afinal de contas, “o que é um papelão no meio da carne! Comemos tanta coisa ruim não é mesmo?” E assim assinamos o recibo de que faríamos o mesmo se estivéssemos sentados na cadeira da presidência da empresa fornecedora de carne, ou em qualquer uma das processadoras e alteradoras de alimento.
Aqui esquecem-se os deveres, o respeito e a ética em palcos que não sejam os oferecidos pelo mundo virtual.
Se ninguém estiver vendo, tudo bem. É só esperar que em quinze dias estamos “sadios” de novo, prontos para mais um evento midiático que imaginamos não ter consequência alguma enquanto o mundo fecha as portas para o Brasil porque os pássaros que aqui gorjeiam não o fazem como os de lá. Só faltou explicar que o gorjeio está desafinado.