“Todo mundo vai morrer, não adianta ter medo. Aliás, se tiver medo de morrer, você deixa de viver a vida, e esse é um jeito horrível de morrer.”
Eu fui uma criança medrosa, passei grande parte da infância com medo de tudo. Lembro-me de chorar quando meu pai tentava me colocar de cavalinho nos ombros dele. Eu gritava e travava em puro estado de sofrimento. Tinha verdadeiro pavor de cair e dar com a cara no chão.
Levei um tempo para aprender a andar de bicicleta. Tinha medo de cair e machucar. Temia com força o som da queima de fogos. Ouvia um rojão e apertava os olhos, pedindo a Deus para aquilo passar logo.
Não comia peixe por temor de engasgar com a espinha do bicho. Muitas vezes, fiquei sem a mistura do almoço por conta do meu receio.
De sol, eu também não gostava muito, não. Tinha medo de ficar com dor de cabeça depois, o que sempre acontecia.
Eu não tomava gelado por medo de ter dor de garganta e voltar ao hospital. Passei grande parte da infância internado por conta de uma bronquite asmática. Eu me lembro de que os meus pais, minhas tias e minhas avós sofriam muito com uma crise nova, a corrida ao pronto-socorro, a rotina da casa alterada pelas internações.
Minha tia Nilza, irmã do meu pai, passava as noites comigo no hospital. Uma noite, por conta de uma medicação errada no soro, eu tive uma espécie de choque. Meu corpo inteiro tremia violentamente. Minha tia gritava no corredor, pedindo ajuda. Eu não tinha mais controle sobre mim. Sentia como se eu fosse um carro despencando sem freio de um barranco, esperando a hora de me arrebentar lá embaixo.
Não sei o que aconteceu naquela noite. Eu adormeci, e quando acordei aquela sensação tinha passado. Mas eu me lembro de ouvir a minha tia no quarto, comentando com alguém: ‘Ele quase morreu.’ Fiquei com aquilo na cabeça feito um monstro que mora debaixo da cama e que vira e mexe dá as caras para me apavorar.
De volta à nossa casa, um dia, minha tia me flagrou chorando escondido no quintal. Sem rodeio nenhum, ela me perguntou: “Você tem medo de morrer, né?”
Ela tinha matado a minha charada. Todos os medos que eu tinha na vida se resumiam a isso. Eu tinha medo de morrer. Ela olhou nos meus olhos e disse assim: “Todo mundo vai morrer, não adianta ter medo. Aliás, se tiver medo de morrer, você deixa de viver a vida, e esse é um jeito horrível de morrer.”
Aprendi que os medos existem para nos ajudar a viver, não para nos privar da vida.
Estou certo de que eu só sobrevivi à minha doença e à minha infância por conta dos meus medos, do amor da minha família, da fé das minhas avós e de instantes como essa conversa com minha tia Nilza.
Tenho pensado nela nesses dias de medo, insegurança e paralisação da quarentena. Tenho tido um monte de medos.
Medo de faltar o ar e perder a mão. Medo de não conseguir pagar o aluguel, de o dinheiro acabar e de não ter um trabalho onde ganhar mais. Medo de adoecer, de perder pessoas queridas, medo de faltar a elas. Medo. Eu tenho tido muitos medos.
E acho que dar nome aos nossos medos, olhá-los nos olhos e conversar com eles são os únicos meios de sobreviver a eles e seguir em frente.
Vivos, fortes, corajosos, prontos para a vida.
Direitos autorais da imagem de capa: Joshua Earle/Unsplash.