Pertenci à banda pobre. Pobre de marré deci!!…
Como dizia minha avó materna: “pobre de nascimento, sem eira nem beira. Sem um tostão furado. Sem herança, e nem um pedacinho de chão para plantar esperanças”.
Conheço muitas pessoas que veem, na infância que tiveram, uma época para ser esquecida.
Aprisionam as imagens no compartimento do esquecimento, e se pudessem apagariam todas elas. Quando acidentalmente mencionam, são resumidas, afoitas, para mudarem de assunto, e suspiram de tristeza. Quase todas finalizam, repetindo o mesmo refrão: “trabalho muito para que meus filhos não passem o que passei, e tenham o que não tive”.
Graças a Deus pela memória, pois nenhuma das lembranças perdi. E por nenhuma delas me entristeço. Não tínhamos televisão, geladeira, telefone; e, computador, nem se ouvia falar na época. Pelo menos não se ouvia no interior da simplicidade de minha casa, desprovida de qualquer meio de comunicação, e das notícias hodiernas.
Não possuíamos uma porção de coisas, que hoje não saberíamos o que fazer sem elas. Mesmo assim, crescemos e sobrevivemos, dando valor a cada coisa adquirida, e a cada sonho realizado.
Sei que a infância não existiu sempre da mesma maneira. Mas, gosto de acreditar que — em todas as épocas — o que tornou a infância especial foi o amor, amenizando as dificuldades.
Pelo túnel do tempo, à época de que mais gosto de aterrissar, é a da infância. Viajo sempre que posso, e quando regresso à realidade, sou toda ternura e saudades.
Não tenho nenhuma lamentação. Só recordo da diversão, e de como tudo era bom! Só recordo da fome de vida dos olhos, e dos pulos que dava o coração.
O mundo de minha infância era imenso, e havia tanto para olhar! Havia energia, gerada por um motorzinho incansável, e tempo para gastá-la.
Não parecíamos ser fracos, mas encouraçados de coragem. Não protestávamos nem fazíamos birra. Aceitávamos aquilo que não podíamos possuir, ou mudar.
A palavra “NÃO”, longe de ser sinônimo de ruindade, delineava a fronteira de nossas possibilidades. Fazia parte de nossa educação, sobre o que poderíamos ter, ou fazer.
Quase nunca podíamos ter nada. Mas, esse nada, não significava nada. A inocência desconhece o discernimento, e nos deixava pensar que tínhamos tudo.
Os livros eram objetos de luxo que nunca apareciam em casa. Gravuras, só na folhinha do ano. Livro bom de verdade estava nas páginas dos céus. Líamos nas estrelas, nas noites enluaradas, e as ilustrações eram feitas de nuvens. Nuvens que viravam animais, gente, e monstros que se desvaneciam para emergirem em outras formas.
Contávamos as formigas, contávamos até os murundus das ladeiras. Contávamos até onde sabíamos contar. Se, na contagem, só podíamos ir até dez, ou até vinte, voltávamos ao zero para recomeçar. E, depois, concluímos, gritando na plenitude de nossos pulmões saudáveis: UM MILHÃO!!
E ríamos, com a sensação de que éramos ricos, pois esse parecia ser o maior número do mundo.
Desconhecíamos que o número é infinito.
Desconhecíamos quase tudo, até mesmo que éramos infinitamente felizes.
Desconhecíamos que a vida é finita. Que o perigo nos rondava, e que corríamos o risco de perder a quem amávamos.
A família era nosso porto seguro. Nunca desobedecíamos, e pedíamos a bênção de mãos postas. O Sol era bem vindo, acordando-nos toda manhã, na multiplicidade de vozes: humanas e dos animais.
Sem que soubéssemos, estudávamos na Grande Escola da Vida.
Sem que soubéssemos, vivíamos, na íntegra, a grande poesia da vida. A poesia que sentíamos e ainda não sabíamos descrevê-la, bulindo dentro da gente, e instigando-nos a sonhar.
Imaginávamos o céu na terra, e tapetes voadores cruzando todos os horizontes.
E lâmpadas mágicas. Muitas lâmpadas, com gigantes saindo de dentro para realizar nossos desejos.
Eram tantos desejos que nos faltavam dedos.
Não eram fantasias. Não era o ilógico de um poema.
Era tudo assombrosamente verdadeiro!
A qualquer hora do dia, podíamos ter dinheiro. Bastava querer.
Um punhado de folhas de café era um milhão. Grãos de milho eram moedas. Um girau velho no quintal era uma venda cheia de brinquedos e doces que gostávamos.
Não contávamos os dias raiados. Calendário era coisa dos adultos. Todos os dias eram surpreendentes, e havia sempre algo novo e valioso para adicionar às riquezas imaginárias.
Algumas pedras coloridas eram o tesouro perdido de algum pirata, que não sobreviveu às intempéries, ou batalhas do mar. Éramos honestos. Achado não era roubado: era sorte escrita no destino.
Possuíamos esse poder de colorir o mundo e colocá-lo no quintal. Tocar nas impossibilidades, imaginar coisas fantásticas; e sorrir, enquanto observávamos as pintinhas de uma joaninha.
Tristeza vinha no dia chuvoso. Com as portas fechadas, e o rei Sol escondido, o jeito era assar batatas nas brasas do fogão a lenha, ou ficar ouvindo a pipoca metralhar — sem piedade — a tampa da panela.
Minha mãe sacudia a caçarola, enquanto cantava uma musiquinha. Conforme suas explicações, a cantiguinha era mágica, e impediria de ter piruás: “Estoura, pipoca, Maria sororoca”. Inventada. Provavelmente, tinha gostado da palavra “sororoca”, para rimar com pipoca. Certamente, desconhecia que a palavra tinha vários sentidos, e nenhum deles combinava com pipoca, e nem com a Maria.
Além das cantiguinhas inventadas, a cura do tédio vinha nos contos. Inventados ou aumentados. Ela não se contentava com historinhas curtas, sem graça, e sem suspense. Ela era todo o elenco de um teatro, fazendo a voz da bruxa, da fada, do rei, de Branca de Neve…
Ela foi sem sombra de dúvida, o primeiro teatro que assisti. Narrava e desempenhava, com tanta perfeição, que nos punha hipnotizados. Em silêncio, acompanhávamos seus trejeitos. Adquirimos a posição de estátuas, sem ar, onde apenas os olhos pareciam vivos.
A história nos abduzia, e tomávamos o lugar do principal personagem.
Não queríamos apenas ouvir. Precisávamos ser heróis…
E éramos!
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