Com os pés no chão, cabelos ao vento, sempre estava a correr, subindo e descendo árvores, lidando com os animais, comendo fruta do pé, sempre com os joelhos ralados, mas com o coração feliz. Eu era uma “menina do buxão”, que é como se chama criança arteira lá pras banda onde nasci!
Lá eu aprendi que saia fogo do céu de vez em quando, e água também, e o estrondo que esse fenômeno reverberava era assustador, mas com o tempo eu já conseguia perceber que depois ficava tudo bem, pois eu via que os matinhos ao redor da minha casa ficavam mais verdes, e tinha uma terra lá na beira do rio que ficava molinha e dava para afundar os pés dentro, até chegar no joelho!
Eu aprendi de onde vem o “bicho da goiaba” quando percebi que seres voadores gostavam de saboreá-la também!
Eu descobri que, antes da manga crescer, nascem flores bem cheirosas!
Descobri que antes de chover pode fazer um calor danado, e eu adorava a brisa fresca depois da chuva!
Aprendi que os animais podiam me machucar, apenas quando eu inocentemente invadia seu espaço, embora, às vezes, eu achasse que eles é que invadiam o meu!
Vi também que alguns podiam me alimentar, como as maravilhosas galinhas que sempre comiam milhos rapidamente no terreiro, e depois colocavam ovos deliciosos!
Lá eu percebi facilmente que a lua mudava de tamanho e que as nuvens, muito enxeridas, às vezes, cobriam as estrelas!
Doces foram esses tempos em que eu olhava para o horizonte e achava que o mundo terminava onde minha visão alcançava, e que se eu fosse até lá, eu poderia tocar o céu!
Foram vários verões e invernos percebendo as mudanças daquele cenário vivo, raras vezes um adulto precisava me falar muita coisa. Assim eu aprendi a viver as estações do ano. Pura magia!
Eu tinha o meu próprio jeito de ler tudo, estava sempre atenta! Eu aprendi a ler o mundo!
E esse foi o início de tudo! E quer leitura mais essencial? Usando as palavras do mestre Paulo Freire: “A leitura do mundo antecede a leitura da palavra.”
Foi no meu quintal que eu aprendi a ler e interpretar as coisas que eu via! E uma interpretação só é boa quando podemos sentir, compreender a realidade que está no nosso entorno, assim aprendemos a ler outras realidades, outros mundos.
Ficamos mais abertos ao mundo do outro, quando percebemos que o horizonte vai além do que imaginamos, um livro, um filme, a história que uma pessoa conta fica mais fácil de entender!
Quando aprendemos a ler o nosso mundo, qualquer palavra fica fácil, qualquer realidade fica fácil de aceitar, pois o mundo é o que é, um lugar de intensas aprendizagens, e não só na infância mas, a vida inteira!
Vivenciar um quintal é encontrar nossa própria essência, experimentando a liberdade de ser!
O contato com a terra é uma oportunidade para que os nossos pequenos experimentem ser livres, o encontro com suas raízes, a leitura do mundo além de quatro paredes, a oportunidade de ler o que é real e simples! Só assim teremos seres realmente humanos e integrados!
“Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo, não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-negro; gravetos, o meu giz.” FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Cortez, 1982.
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