Nós sempre sabemos quando a música está chegando ao fim, quando a última página está próxima ou a cortina prestes a declarar o fim de um ciclo.
Quando o inverno se aproxima, costumo separar algumas peças de roupas para fazer doação. Com o intuito de aquecer outras pessoas, seleciono alguns modelos em desuso, que estejam em boas condições, mas que eu não tenho vestido mais. E sempre recebo olhares agradecidos – da vizinha, da senhora da limpeza do condomínio – , pois sempre há quem se interesse por algo que para nós já não serve mais. E não por não estar bom, bonito, estar rasgado ou estragado, mas por não mais fazer parte dos meus dias de hoje.
Gosto muito daquele filme “Comer, rezar e amar”, baseado no livro autobiográfico da escritora Elizabeth Gilbert, que conta a história de uma mulher (Julia Roberts) em busca de algo que nem ela mesma sabe de fato do que se trata. Em uma das cenas em que a protagonista está na Itália, ela se depara com as ruínas que marcaram uma época, mas que naquele momento fazem parte de um contexto totalmente diferente da história atual de Roma. “As ruínas são dádivas”, assim como alguns episódios infelizes ou doloridos podem levar a mudanças importantes e necessárias. A escritora e buscadora faz essa comparação com a vida, com as pessoas e alguns momentos cruciais que os acometem.
A vida sempre nos põe à prova, isso acontece com todos nós, somos desafiados a mudar o rumo por diversas vezes, embora muita gente custe a perceber ou a admitir.
Somos confrontados quando queremos muito algo que parece escapar como água por entre os dedos. Somos desafiados todas as vezes que insistimos num lado, desrespeitando os avisos da direção mais apropriada para o outro sentido. Somos afrontados quando não nos sentimos mais satisfeitos, ou mesmo felizes, ao fazer tudo como sempre fizemos, ao usar as mesmas roupas, ao andar pelo caminho da roça de todo dia, ao visitar apenas lugares seguros e conhecidos.
Às vezes, para recuperar algo grandioso e genuíno, precisamos nos esvaziar do que ocupa espaço, que faz peso e bloqueia nosso livre atravessar. É preciso abandonar, além das peças antigas, também lugares e pessoas que, embora tenham sido muito importantes, já não fazem mais parte do momento de agora. E não é preciso agirmos nos vestindo da dor da partida, e sim, com o entusiasmo necessário para escrever novos capítulos, partindo daquele ponto que separa algumas águas, mas que garante um final talvez mais feliz, ou que faça sentido, pelo menos por enquanto.
Sempre sabemos quando a música está chegando ao fim, a última página está próxima ou a cortina prestes a declarar o fim de um ciclo. Sempre relutamos por medo do que não conhecemos, pela insegurança da transformação, pela incerteza dos próximos passos. Porém, se vencemos essa linha tênue, às vezes, torta, entre medo e realização, a vida nos surpreende. Surpreende no reconforto das nossas buscas, no aconchego das nossas dúvidas, na confiança de nossos ideais, na revelação necessária sobre nós mesmos.
Porque a verdade aparece para quem está disposto a deixar tudo, para quem é capaz de abandonar todas as coisas e, ainda assim, sentir-se complemente pleno, ilimitado e irrestrito a tudo.
Melhor viver o seu próprio destino de forma imperfeita do que viver a imitação da vida de outra pessoa com perfeição. Então, agora, comecei a viver a minha própria vida. Por mais imperfeita e atabalhoada que ela possa parecer, ela combina comigo, de alto a abaixo.
Elizabeth Gilbert
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