É preciso coragem para estourar as correntes invisíveis das nossas limitações e força para romper o doloroso comprometimento a que nos submetemos por medo de perder o amor do outro. É preciso andar com os próprios pés e atrever-se a ser quem é.
Para Descartes, “penso, logo existo”. Mas, na vida, o que parece determinar a nossa existência, desde muito cedo, é o olhar do outro. Quando fazemos o que os nossos pais gostam, recebemos demonstrações de amor e sorrisos de aprovação. Nós nos sentimos amados e pertencemos. Estamos seguros.
Quando fazemos algo que não gostam, recebemos cara feia e o famoso não e com eles vêm a sensação de desamor, rejeição e exclusão. Estamos sozinhos.
Para Bert Hellinger, filósofo alemão criador da Terapia Sistêmica e Familiar, “a função mais importante da consciência exige em vincular a criança à sua família. A consciência reage bem sutilmente ao que uma criança deve fazer ou deixar de fazer para pertencer à família. Por isso, a criança tem a consciência tranquila quando se comporta de forma a poder pertencer à família. Porém, tem a consciência pesada quando faz algo que lhe cause o receio de colocar em perigo o seu direito ao pertencimento”.
Por amor e pela dor, nós nos moldamos e aprendemos a nos comportar. Sabemos o que é permitido e o que não é, e quais serão os frutos dos nossos atos. Nos tornamos, de certa forma, marionetes.
Até que um belo dia, decidimos nos atrever a ser e a fazer o que nos parece certo, independentemente do olhar e das expectativas do outro.
Começamos a encenar a nossa peça sem nos incomodar se a plateia vai se decepcionar, levantar e deixar o teatro. Quebramos a casca do ovo e vemos a luz pela primeira vez. Somos o palco e a plateia de nós mesmos. O outro é apenas o reflexo dos nossos medos e incertezas.
É preciso coragem para estourar as correntes invisíveis das nossas limitações e força para romper o doloroso comprometimento a que nos submetemos por medo de perder o amor do outro. É preciso andar com os próprios pés e atrever-se a ser quem é.
Quando estamos em total sintonia com o nosso interior e, consequentemente, com o que nos atrai, existe uma chama de entusiasmo que nos move. É o lampião iluminando o caminho do buscador. É a fogueira aquecendo o coração de um corajoso. É o fogo que queima as impurezas e revela o ouro. É a luz da autodescoberta.
Segundo Carl Gustav Jung, “a transformação começa num indivíduo que, talvez, possa ser eu mesmo”. E pasmem, existe uma garantia no que parece loucura ao olhar do outro: há plenitude e imensa satisfação em seguir o chamado interior e qualquer crítica e olhar de reprovação são irrelevantes.
A autoconfiança e o amor-próprio nutrem e fortalecem a alma. Se o mundo não pode apoiar o que desejo, eu me apoio. E se ninguém me amar se eu for o que desejo ser, amar-me-ei.
E se todos virarem as costas, ainda assim eu estarei comigo. Assim, torno-me um indivíduo e, curiosamente, passo a atrair mais amor e admiração.
O nosso melhor mestre e o nosso pior juiz não estão no outro, e sim em nós mesmos. Quando fazemos o que nos parece certo, por mais que não dê certo, existe paz e acolhimento de uma escolha feita e vivida.
O que o nosso juiz interno não aceita é irmos contra o nosso mestre. Parece-me que existe um acordo, uma espécie de equilíbrio de consciência e que a harmonia ou a desarmonia entre eles determina a sensação de estarmos no caminho certo ou errado, se sentimos paz interior ou confusão.
Quando seguimos nosso mestre, sem temor, o juiz se cala e consente. Você pode estar pensando neste momento: mas, são tantas vozes dentro de uma mente inquieta. Como saber qual é a do mestre? Que caminho seguir?
Jung diz que “estamos tão enrolados e sufocados em nossa consciência subjetiva que esquecemos o fato antiquíssimo de que Deus fala sobretudo através de sonhos e visões”. E que “para tornar possível esta visão interior, é preciso desimpedir o caminho que possibilita essa faculdade de ver”.
Aquietar a mente pode ser o primeiro passo em direção ao mestre interior. Então, respire fundo e tenha certeza de que há calmaria no olho do furacão.
O mar, por mais agitado que pareça ser na superfície, é, no fundo, sereno e silencioso. Basta um mergulho para ver que por baixo das ondas e do balanço o tempo para e há quietude. E assim é dentro de nós.
O mergulho interior é encontrar esse centro de paz, onde o mestre e o juiz vivem em harmonia, onde há confiança e alegria e onde a vida faz sentido.
“Quem está em consonância com o mundo e o aceita tal como ele é, sabe o que prejudica e o que ajuda, o que é bom e o que é ruim. Por estar em sintonia, ele segue esse saber, independentemente das opiniões favoráveis ou contrárias. Ele repousa em seu centro, em equilíbrio, simultaneamente recolhido e dedicado”, conclui Hellinger.
Tornemo-nos o “homo totus”, de Jung, “homem total oculto e ainda não manifesto, que é também o homem mais amplo e futuro”, sabendo que, “no entanto, o caminho correto que leva à totalidade é infelizmente feito de desvios e extravios do destino. Trata-se da “longíssima via”, que não é uma reta, mas uma linha que serpenteia, unindo os opostos à maneira do caduceu, senda cujos meandros labirínticos não nos poupam do terror. Nesta via ocorrem as experiências que se consideram de “difícil acesso”. Poderíamos dizer que elas são inacessíveis por serem dispendiosas, uma vez que exigem de nós o que mais tememos, isto é, a totalidade.”
Que tenhamos coragem para encarar os desafios do caminho em direção à nossa potencialidade máxima. Afinal, viver o que nascemos para ser é o nosso direito divino.
*As citações de Bert Hellinger foram extraídas dos livros “Para que o amor dê certo” e “No centro sentimos leveza”, ambos da Editora Cultrix, e as de Carl Gustav Jung foram extraídas do livro “Espiritualidade e Transcendência”, Editora Vozes.
Direitos autorais da imagem de capa: wall.alphacoders / 549396