1980 – 1990. Diz a lenda que existiu uma geração de pessoas que teve uma infância difícil, sabe? Elas faziam provas em folhas com cheirinho de álcool e mimeógrafo, juntavam um dinheirinho para as excursões da escola, e raramente comiam na cantina.
Iam em grupo aos centros culturais da cidade, onde cada um copiava uma parte do livro no caderno para que depois, aquele que tinha a letra mais bonita, pudesse passar tudo em belíssimas folhas de papel almaço.
Adoravam fazer trabalho de escola na casa do colega que morava em sobrado. Era chique morar em sobrado, sabe?
A mãe deles fazia Tang de laranja e pão com queijo para o lanche. E eles riam. Reclamavam dos professores, passavam branquinho quando erravam o texto, comiam o lanche e riam…
Era uma vez uma geração que sonhava com um tênis New Balance, e esperava, esperava muito. Esperava pelo Natal, pelo aniversário, pelo dia do pagamento, pelo dia do índio. Enfim, esperava pelo dia em que o pai ou mãe pudessem comprar. E se não pudessem? Eles iam de tênis Montreal, de Bamba Cabeção, mas iam. Ah, se iam!
Era uma geração estranha que dançava nos bailinhos de garagem ou no máximo, nas matinês de danceterias da época, se o pai deixasse. Eles iam de ônibus para os, ainda singelos, shoppings da cidade. Divertiam-se muito pegando um raro cineminha nos bancos duros e vermelhos das salas.
Aquela geração brincava na rua, falsificava a assinatura do pai na advertência e corria, corria muito, quando ouvia os gritos da mãe: – Entre e vai já pro banho!
Aliás, mãe era um capítulo à parte. Elas conheciam nossos amigos pelos apelidos: O Cabeção, o Peidoca, o Chulé e o Catota.
-“Ah, mãe… O Catota não vai na excursão. A mãe dele não deixou.
– É que o Catota tava tirando muita vermelha, aí ela não deixou ele ir no Playcenter”…
Simples assim.
Sem culpa, sem terapia e sem fluoxetina. Grande mãe, essa do Catota… Geração esquisita aquela. Eles jogavam vídeo game mas, não resistiam aos gritos dos amigos no portão:
– Peidoca, Peidocaaaaaa!
– Aparece aí, mano! Você pega no gol?
E andavam de bicicleta, de carrinho de rolimã, brincavam de mãe da rua, de esconde-esconde valendo a rua de cima e a rua de baixo. Eita cansaço! Esperavam as férias de julho para ir à Praia Grande na casa da tia e enchiam a paciência da mãe para deixar o Cabeção ir junto.
Apaixonavam-se pela vizinha, pela gata da 6º B e pelo magrão do 7º A. Suspiravam, mandavam bilhete, recado, sinal de fumaça e se encontravam, gaguejavam e beijavam! Só que o coração disparava e as pernas tremiam. Tremiam muito!
Era uma vez uma geração que cresceu assim, sem muito luxo, mas com tudo o que precisava para se tornar as pessoas trabalhadoras, responsáveis e respeitadoras que se tornaram. Mas aí, alguém disse que era a chance de melhorar as coisas, sabe? Evoluir mesmo!
– Vamos dar tudo aquilo que não tivemos! – Santa ideia Batman…
2000 – 2019 – E surgiu uma geração que cresceu num momento onde a segurança piorou muito, é um fato. Já não dava mais para brincar de esconde-esconde valendo a rua de cima e a de baixo. O ensino público degringolou muito e, com muito esforço dos pais, essa geração foi para os colégios particulares.
As mães, por necessidade ou opção, tiveram que trabalhar fora e os bolos de fubá do café da tarde, começaram a vir da padaria mesmo. Os colégios viraram clubes e, junto com a mensalidade, vieram os tênis, as mochilas, as excursões e os hábitos um tanto exagerados para bolsos que cresceram nos anos 90.
-“Fazer o que, né”?
– “Faz parte da geração deles, né”?
A viagem de férias começou a ser paga em janeiro e, depois de tantas vezes, a Disney parece que foi perdendo a graça. A idade para os bailinhos começou a diminuir. Muito. O tom de voz que respondiam aos pais começou a aumentar. Muito. Mãe e pai, já não apareciam mais como quem não quer nada, nos bailinhos do salão de festas.
– “A gente tem que respeitar o espaço deles, né”?
O Catota virou Henrique Windsor de Castro, lá do condomínio Vila Nobre, sabe mãe? O Peidoca virou Enzo Middelton de Lima e Silva E o Chulé teve síndrome do Pânico. Esse apelido sempre foi um grande trauma para ele, mesmo.
Ah, mais eles se divertiam com suas primeiras descobertas também! Protegidos pela segurança dos belos apartamentos, do horário da tarde, da vigilância da diarista da família, eles beijavam, como qualquer adolescente.
Engraçado… era um tal de beijo triplo, quádruplo… Mas o coração não disparava, tampouco as pernas tremiam de emoção…
– “Ai gente, é descoberta, né”?
– “A gente também transgredia, né”?
Que geração mais comunicativa. Uma bênção!
Falavam-se na escola, na natação, no curso de esgrima, no polo aquático e, como tinham muito o que falar, se falavam pelos celulares. E falavam-se à tarde. E à noite. E nas madrugadas. E como tinham mesmo muito o que falar, ensinavam aos outros o que fazer e, para isso, faziam vídeos. E se assistiam muito. Muito mesmo.
E, como expectadores da vida alheia, aquelas crianças e adolescentes “viviam” apenas de observar a vida dos outros. Esses outros, em suas belíssimas casas, ensinavam tudo que achavam que uma criança/adolescente precisava saber.
Tudo o que estávamos ocupados demais para ensinar. E, na comodidade e no silêncio que deixavam, enquanto observavam a infância alheia, pais descansavam.
– “Fazer o quê? – A geração deles é assim, né”?
– “Não podem ficar alienados, né”?
Depois de 2020 – Era uma vez uma mãe de dois. Perdida, ela confessa. Dançando entre, carregar livrinhos de pintura e giz de cera para os restaurantes, para que as criaturinhas não causem demais e, respondendo à perguntas do tipo: Por que o mais velho de sete anos, AINDA não tem um celular?
Perdida entre adorar e fazer uso da tecnologia como todo ser humano, e apresentar aos poucos e sem que o mundo a julgue, essas facilidades aos seus pequenos. Tentando resgatar o prazer de fazer nada juntos. Nada mesmo, só balançar na rede no domingo à tarde.
Era uma vez uma mãe looonge de ser perfeita. Tem hora que ela aperta, abraça e beija. Tem hora que baixa a mãe dos anos 80 e ela grita mesmo:
– Fala direito comigo e me respeita, menino!
Era uma vez uma mãe que também parcela viagens e sonhos, que também adora um vídeo divertido de vez em quando e que já recorreu à Galinha Pintadinha para ter 5 minutinhos de banheiro. Ela é humana.
Era uma vez uma mãe que sonha com filhos adultos normais, sabe? Gente que brincou muito, que se decepcionou, soube respeitar os outros, caiu, levantou, aprendeu a amar tecnologia mas, não troca um olho no olho por nada.
Era uma vez uma mãe de dois que, com certeza, representa muitos, inúmeros, pais e mães. Pais e mães um tanto cansados e perdidos num mundo que avança muito e regride um tanto.
Avança em tecnologia, conhecimento, acesso à informação e retrocede em princípios, limites e respeito. Era uma vez uma mãe de dois, procurando apenas, o caminho do meio. Alguém já achou? Avise-me?
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