Nem todo mundo está preparado para interações gentis no dia a dia, assim como nem sempre é seguro praticar gentilezas no país em que nós vivemos.
Tenho escrito aqui e ali sobre a necessidade de sermos mais gentis uns com os outros, sobre o quanto não faz sentido falarmos quatro idiomas e não dizermos “bom dia” no elevador.
Repito feito um disco riscado que perdemos a capacidade para a gentileza e outras coisas.
Acredito de fato em tudo isso, mas faço aqui uma ressalva: nem todo mundo está preparado para interações gentis no dia a dia, assim como nem sempre é seguro praticar gentilezas no país em que nós vivemos.
Reconheço, depois de tantas vezes dizer “bom dia” no elevador e ficar no vácuo, que esse não é o maior problema. A questão mais grave, na minha modesta opinião, é a forma como algumas pessoas, incapazes de qualquer gentileza, podem distorcer as boas intenções de quem pratica gestos gentis e tomá-los de modo avesso.
Você entra no elevador, diz “bom dia” a um desconhecido e dá o azar de esse sujeito ser uma alma grosseira, agressiva e mal-intencionada. Um machão, no pior sentido do termo. Se você for um homem, esse cara vai olhá-lo com desprezo e desconfiança. E se você for mulher, ele vai achar que você está lhe “dando mole”. Depois vai lhe dar uma cantada ou fazer coisa pior.
Um amigo homossexual disse “boa noite” a um vizinho no elevador do prédio em que ele mora e, adivinhem, tomou um soco na boca.
Conheço inúmeros casos de moças que foram assediadas no trabalho, no transporte por aplicativo, no ponto de ônibus e até no bendito do elevador porque, em algum momento, os assediadores confundiram a boa educação dessas mulheres com uma abertura para qualquer outra coisa.
Não estou generalizando. Sei que há homens e homens. Mas nós vivemos num país em que um deputado, desses dotados de quatro patas e duas orelhas enormes, ironizou as discussões sobre o assédio sexual e defendeu “o direito de as mulheres serem assediadas”. Vivemos num país em que muitos meninos aprendem a ser machistas em casa, com o pai e o avô. O mesmo país que não consegue reduzir os números de feminicídios em todas as suas camadas sociais. Triste.
Nestes tempos, gentileza nem sempre gera gentileza. Também gera mal-entendidos. Mas isso não é desculpa para largarmos mão e desistirmos de melhorar os nossos modos.
Sigo defendendo a gentileza como um jeito de existir. Acredito mesmo que precisamos reaprender a ser gentis.
Mas prometo, eu juro compreender quando alguém não responder ao meu “bom dia” no elevador.
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