“E, nessas horas, eu percebo nele um comportamento semelhante ao daquela outra pessoa”, disse-me uma amiga que, em meio a uma crise no atual relacionamento, comparava as atitudes do atual parceiro a um frustrado e abusivo relacionamento anterior.
E era nessa afirmação que eu – recém-saído de um lance igualmente frustrante, e com padrões recorrentes em meu histórico de relacionamentos, paixões e afins – meditava madrugada adentro, enquanto o motorista chamado pelo aplicativo disputava atenção com as minhas reflexões. Dessa forma, o Universo me dava material para a produção do texto que eu já intentava redigir.
Sim, certamente o título deste artigo provoca certa resistência e até mesmo desconforto em alguns, e não é por menos. Diante dos abusos, traições, indiferenças, decepções e belas puxadas de tapete com as quais muitos de nós nos vemos às voltas, me parece compreensível que reviremos os olhos, irritados, diante de um texto que sugira gratidão a quem nos atrapalha a vida.
Mas você não leu errado. A sugestão é mesmo essa, e eu vou lhe explicar o porquê.
O Mestre Jesus, sinônimo de amor maior, ao se deparar com numerosa multidão ao descer da montanha com seus apóstolos, após longa noite de oração, recomendou aos ouvintes que amassem os seus inimigos, fazendo-lhes o bem e pedindo por eles em oração (Lucas 6, 27-28). É nessa ocasião, inclusive, que se fez ouvir a famigerada orientação de “oferecer a outra face” (Mateus 5,39; Lucas 6,29), comumente tomada ao pé da letra e, por conseguinte, mal compreendida.
Naturalmente, e como bem explica Allan Kardec (1804 – 1869), decodificador da Doutrina Espírita, o amor aos inimigos exaltado por Jesus segundo o evangelista Lucas, nada tem a ver com tê-los em nosso convívio em pé de igualdade com os nossos afetos (pais, cônjuges, amigos etc.).
Amar os inimigos, aqui, equivale à visão espiritual que nos possibilita conceber o nosso algoz como mero instrumento das provas às quais estamos destinados, para a nossa própria evolução. Nesse sentido, caberia ao sujeito sábio ter gratidão a Deus pela dor provocada pelo outro, “que lhe fornece a ocasião de provar sua paciência e sua resignação” (O Evangelho Segundo o Espiritismo, IDE, 2016, p. 188-191).
A gratidão aos nossos supostos inimigos, porém, não se trata de uma filosofia restrita à doutrina de Kardec. Elainne Ourives, psicoterapeuta vibracional quântica, escritora e criadora de diversos métodos no âmbito da Física Quântica, é firme defensora da gratidão àqueles que nos vitimam. Segundo ela, essas pessoas exercem o papel de curar a nossa ferida. Segundo Elainne, aqueles que nos maltratam – por ela chamados de “atores” – na verdade aceitaram o papel de nos trair, nos magoar e nos enganar para que possamos curar em nós os aspectos que estão criando para nós uma realidade difícil. Percebe a coerência nos dizeres dessa estudiosa? É muito comum que, ao olharmos as nossas conquistas e aquilo no que nos tornamos, sintamos gratidão àqueles que passaram pela nossa vida nos dando amor e encorajamento, como nossos pais, irmãos, amigos, parceiros e professores queridos. A mágoa e a nossa estreita visão de mundo, porém, nos impedem de ver – ou, quem sabe, de aceitar – que aqueles que nos “sacanearam” não raro são os que mais contribuíram para o nosso avanço ao nos fazer mal, ainda que sua intenção consciente passasse ao largo de nos ajudar.
E, tal como defende Elainne Ourives, não é de nós que devemos ter pena por havermos estado na posição de vítimas, mas, pelo contrário, dos nossos atores, justamente por terem aceitado tal papel. Isso pode soar estranho, eu sei, mas não muito se considerarmos os dizeres da badalada internauta Ana Ávila: “Fique em paz. Quem te magoou fez uma dívida com a lei do retorno. Você não” (Instagram, 21 nov. 2018). Vê como a vida é sábia e generosa? Quem o magoa o ensina, por mais que, ao ensiná-lo pela dor, também acumule dívidas para si. É como se fizéssemos parte de um grande quebra-cabeças em que, a princípio, algumas peças parecem não fazer sentido.
Mas, lá na frente, com o jogo devidamente montado, compreendemos a razão de ser de cada uma.
A mesma Ana Ávila, porém, nos sugere: “Perdoe. Mas não precisa ter amnésia” (Instagram, 30 out. 2018). Perceba o quanto essa orientação vai ao encontro da explanação de Kardec sobre “amar os inimigos”. Ninguém aqui está sugerindo que você convide aquele colega que contribuiu para a sua demissão do emprego para tomar um cafezinho, e tampouco que junte as suas trouxas e vá morar com aquele namorado recentemente pego no flagra com uma de suas melhores amigas.
Amar, perdoar e ser grato aos inimigos nada tem a ver com fingir que não aconteceu “e deixar o campo livre aos maus” (2016, p. 193). Pelo contrário, tem a ver com aceitar, com humildade, em lugar de retribuir o mal com o mal, o que só faria alimentar um ciclo de negatividade.
E volto às reflexões de Hippolyte Léon Denizard Rivail, o famigerado Kardec: “(…) é mais glorioso para si ser ferido do que ferir, suportar pacientemente uma injustiça, do que ele próprio cometer uma; que vale mais ser enganado do que enganador, ser arruinado do que arruinar os outros” (2016, p. 194). Afinal, conforme já dito, “quem te magoou fez uma dívida com a lei do retorno. Você não.” Só uma visão mais abrangente da vida, uma visão que extrapole os limites da existência na matéria, pode nos dar a serenidade necessária diante da dor que nos é provocada.
Isso, a propósito, me faz lembrar a primeira Lei Espiritual da Índia, segundo a qual “a pessoa que vem é a pessoa certa”, pois, fazendo-nos o bem ou o mal, ela estará contribuindo para o nosso avanço e aprendizado.
Eu sei que, para muitos de nós, parece árdua a compreensão dessa verdade. Sobretudo porque você, que lê este texto, ainda sofre as consequências daquilo que lhe disseram, daquela indiferença no dia mais importante de sua vida, daquela humilhação desnecessária, daquele desrespeito absurdo, daquela traição ou abuso. Eu sei que é difícil e, portanto, compreendo você. E é justamente por compreendê-lo(a) que proponho uma mudança de paradigma, uma visão mais ampla que lhe pode dar a força de suportar, pacientemente, os golpes dirigidos contra os seus interesses e o seu amor próprio (2016, p. 194).
A visão espiritual é como uma correção visual: óculos, binóculos ou mesmo uma luneta, sem os quais nos seria impossível ver com clareza o que está no horizonte, bem diante de nós.
E é por isso que, por mais duro que eu possa parecer, devo dizer que nunca é sobre o outro, mas sobre você, como bem diz a querida Rhonda Byrne (1955–), autora do best-seller The Secret. Segundo a autora australiana, o atual estado dos nossos relacionamentos – sejam eles afetivos, profissionais, de amizade e afins – é um claro sinal do que estamos dando amor ou negatividade. Nesse sentido, a grande responsável pela popularização do conhecimento da Lei da Atração no mundo, destrói aquela ideia de que “a culpa é do outro”, argumento esse ao qual comumente recorremos diante de um relacionamento problemático (O Poder, Agir, 2010, p. 173). Como é possível responsabilizar o outro, se ele e suas ações nada mais são do que indicadores daquilo que precisamos curar em nós mesmos?
Segundo Rhonda Byrne, “para a Lei da Atração não existe ‘outra pessoa’. Você dá a si mesmo o que dá aos outros” (2010, p. 176), e, “para receber a vida dos seus sonhos, é essencial que você descubra como seus relacionamentos o afetam neste momento, e como eles são importantes para que a magia da gratidão comece a mudar sua existência” (A Magia, Sextante, 2014, p. 43).
Ao sugerir que tomemos as pessoas como nossos personal trainers emocionais, Rhonda Byrne define como treinadores mais durões as pessoas com as quais estabelecemos relacionamentos mais desafiadores, que, justamente por nos levarem ao nosso limite, nos tornam mais fortes e mais determinados a escolher o amor em toda e qualquer circunstância (2010, p. 181-182).
E isso me leva de volta aos dizeres da minha amiga, bem como aos padrões presentes também em meus relacionamentos, sobre o que conversamos no início deste artigo. Será mesmo que o fato de nos metermos sempre em relações nas quais somos relegados a um lugar de menos valia, é sinal de que as pessoas são más por natureza ou de que temos “dedo podre” para relacionamentos? Não seria isso um sinal de que precisamos nos valorizar, nos amar e entendermos que não pode vir de fora aquilo que há de nos preencher? Aquele chefe que vive a impor obstáculos para a concretização de nossas ideias para a empresa, não seria um recado do Universo de que precisamos cessar a nossa vaidade? Ou, quem sabe, de que precisamos alçar voos maiores?
Enfim, são inúmeras as possibilidades, e somente a você cabe a correta interpretação, sempre embasado(a) na certeza de que as relações são o instrumento primeiro do qual Deus se vale para se comunicar conosco, nos orientar e indicar caminhos, e é justamente aí que está a grande magia da vida. Vida essa que, por sinal, não é a nossa vilã, mas a nossa amiga, que ampara e cuida da gente.
A posição de vítima pode parecer confortável à primeira vista, mas, a bem da verdade, trata-se de uma posição que só faz mergulharmos ainda mais na negatividade, mantendo-nos estagnados e impedindo-nos de avançar em nossa jornada.
Perceba que tanto o Mestre Jesus como a Doutrina Espírita, a Física Quântica e tantos outros mestres e filosofias, estão há muito nos convidando a reconhecermos o nosso próprio poder com a autorresponsabilidade, saindo da posição de pobres vítimas para assumirmos o lugar de discípulos, alunos de uma imensa escola chamada vida.
Talvez estejamos matriculados em uma academia na qual lidamos com personal trainers emocionais impiedosos, como defende Rhonda Byrne. Ou, quem sabe, estejamos atuando em uma trama na qual tenhamos que contracenar com atores que interpretam um antagonista cruel, como defende a Elainne Ourives.
O importante é que você saiba que, se você direcionar o foco de “aquilo que me fizeram” para “o que eu aprendi com o que me fizeram”, a provável consequência será a sincera gratidão àqueles que aceitaram o papel de lhe machucar.
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