Tocou uma música tão alta e meus dedos dançavam no ar, fazendo um movimento divino de desenho, mas tocou o despertador, arrebentando os sonhos de quem acorda todo dia fazendo promessa e fantasia para chegar mais cedo a hora de dormir.
Escovei os dentes cronometrando o tempo do fio dental e de lavar o rosto com água perfumada. Corri em frenética sintonia com os ponteiros exatos do relógio redondo da estação. Subi os três degraus da condução, trocando umas notas sujas de economia e umas moedas feridas de estilhaços de cofrinho quebrado por um ingresso no transporte público que só não é tão público porque é pago e porque é caro e porque é raro ter onde sentar a impaciência da pressa de chegar ao mesmo lugar todo dia.
Contei os postes de eletricidade e os andares dos prédios altos, arranhando o céu e fazendo chorar uma nuvem grávida de tempo, nascendo antes da hora uma tempestade prematura que me fez molhar os sapatos e perder a hora de entrar na porta do emprego.
Fiz os cálculos dos minutos perdidos e entrei em exatidão com o patrão, trocando o tempo do meu almoço pelas horas a mais na burocracia.
Voltei para casa ardendo em febre, culpa da água molhada de vento que cobriu de agonia meus pés gelados de inverno. Já era tão tarde que mal havia na casa formiga ainda em busca de comida.
Então, fiz apenas um prato de poucas calorias, tomei um banho contando as gotas d´água morna que escorriam pelo azulejo coberto de tantos mais fios de cabelo do que era normal perder por dia.
Assim foi por tantos anos que perdi quase tanto tempo sendo apenas uma contadora de minutos que ousaria dizer que os meses vazavam anos de pura nostalgia sem que eu me lembrasse de nada, pois o que fica na memória não são os minutos e sim os momentos.
Então, entendi, sem heresia, que apenas passa voando o tempo de quem anda nessa correria desenfreada em busca de mais um dia para fazer contas tão exatas de uma vida que não cabe na matemática e nem faz sentido a euforia de viver se apressando para terminar o dia e sonhar com tempos melhores sem plantar a sementinha.
Desisti da matemática, que me perdoem os estudiosos, mas é preciso mais que uma equação para mergulhar no mistério de ser: a vida não é exata.
Agora vivo em momentos e deixo de pensar que faço coisa pouca enquanto espero algo muito. Se o muito não chegar, ora, deve ser por que de pouco em pouco fui fazendo poesia. Os “enquantos” podem não fazer sentido, bem sei. Mas fazem sentir.
Feito os “hojes” que eu ousava dizer “é segunda”. Enquanto não chega a sexta, “vou levando” o tempo”.
Coisa tola. Quantos “hojes” deixei de viver? Ando em reforma, desconstruindo para botar janela onde tinha parede e agora sei que há vida enquanto acontece o dia.
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