A ignorância de hoje é usada como instrumento para manter o obscurantismo no meio do povo, ficando mais fácil submetê-lo à distração.
François Rabelais foi padre, médico francês, humanista e genial escritor de sátiras e frases, que lançou o romance “Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do gigante Gargântua”. Ele é o herói sarcástico e glutão desse livro, que se destaca por sua força descomunal, superada apenas por seu apetite.
O nome Pantagruel significa “tudo alterado” e é também a alcunha de um demônio bretão, que se divertia em jogar sal na boca dos bêbados adormecidos, de onde nasce a expressão pantagruélico. O conto foi inspirado na tradição oral do medievo, que narra em uma linguagem simples os episódios cômicos e delirantes de um comilão.
Rabelais levou o escatológico e o humor ao limite do absurdo, que resolveu explorar o grotesco, a fim de satirizar e deixar enfurecidos os seus pares do clero e da nobreza. O que ele escreveu sobre a sua época “serve como uma luva” para a ignorância atual, que se baseia em preconceitos e que ignora o bom senso, a razão e a sabedoria.
Em plena modernidade, ressurge um movimento grotesco, que se expande no Brasil e no mundo, com o objetivo de banalizar a ausência de conhecimento, expondo o público ao erro e à ilusão, para lucrar com a exploração intencional de dúvidas ou confusões, que Rabelais já alertava: “A ignorância é a mãe de todos os males.”
A socióloga e professora da Universidade de Essex, a canadense Linsey McGoey, autora do livro “Os desconhecedores: como a ignorância estratégica rege o mundo”, afirma que, se olharmos para a história moderna, perceberemos diversos exemplos de pessoas tentando gerar fatos alternativos ou dizendo que a realidade de alguém não é verdade, para ganhar vantagens políticas.
Além disso, a professora considera que a ignorância é explorada por diferentes grupos para fins políticos em governos, decisões jurídicas, na mídia e até nas mais influentes teorias econômicas. Assim, a ignorância de hoje é usada como instrumento para manter o obscurantismo no meio do povo, ficando mais fácil submetê-lo à distração.
Segundo McGoey, há três tipos de “homo ignorans”:
1. O ignorante inocente, que não tem ideia do que desconhece.
2. O ignorante, que entende que não sabe tudo e que reconhece que o que você não sabe é tão relevante quanto o que você sabe.
3. O agnotologista, que tenta fabricar incertezas, que pode estar em qualquer espectro político, dos mais conservadores ou progressistas.
É importante ressaltar que a “agnotologia” é o estudo das políticas de produção da ignorância. Para tanto, essas políticas devem ser eficazes, incessantemente repetidas, amplamente difundidas e aceitas pela população como a única verdade. Nisso Rabelais foi certeiro: “Medo e a subserviência pervertem a natureza humana.”
Aliás, a ignorância é o reflexo de crenças políticas, culturais, religiosas, etc., que são estimuladas pelas mídias sociais e por uma falsa narrativa: que a Terra é plana, que não há evolução das espécies, que a defesa do meio ambiente é uma mentira, que a teoria da relatividade não existe e outros desatinos. A sátira de Rabelais nessas questões é atualíssima: “É mais difícil esconder a ignorância do que adquirir conhecimentos.”
Afinal, sem investimento em ciência, pesquisa e tecnologia, será difícil erradicar a ignorância na vida das pessoas, permitindo que se legitimem os discursos de ódio em decisões políticas. Ou seja, o único modo de combater a ignorância é com educação de qualidade, que abre caminhos para a liberdade e o conhecimento.
É como disse Rabelais: “Ciência sem consciência não passa de ruína da alma.”
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